A seguir trago interessantes pontos sobre o que conhecemos como espiritismo... mas não o espiritismo brasileiro: Os trechos comentados a seguir são da Revista Espírita e Jornal de Estudos Psicológicos de 04/1864, lançadas na França do século 19;
"Quis Deus que a nova revelação chegasse aos homens por uma via
mais rápida e mais autêntica. Eis por que encarregou os Espíritos de
levá-la de um a outro polo, manifestando-se por toda parte, sem dar a
ninguém o privilégio exclusivo de ouvir a sua palavra. Um homem pode ser
enganado, pode mesmo enganar-se, mas assim não poderia ser quando
milhões de homens veem e ouvem a mesma coisa. É uma garantia para cada
um e para todos. Ademais, pode-se fazer um homem desaparecer, mas não se
pode fazer desaparecerem as massas; pode-se queimar livros, mas não se
pode queimar os Espíritos."
Não abordarei neste momento sobre a questão de possível teor religioso aqui, como Deus e revelação; Isto porque devo começar pelo surgimento do espiritismo a partir da existência do espírito como alma (não só) humana imortal e sua respectiva consequência nos "fenômenos mediúnicos".
O texto alega que o espiritismo nasce de uma série de fenômenos, os quais a doutrina classifica como mediúnicos. Não há necessidade de se entender ao pé da letra: por "milhões" de pessoas que enxergam e/ ou ouvem a mesma coisa, entende-se os mediuns - eles estão por toda parte, porque médium não é um ser excepcional que recebeu um dom raríssimo nem são determinados indivíduos treinados em algum centro espírita: Todo ser humano é médium em algum grau, seja menor ou maior. Outras obras do espiritismo indicam que qualquer pessoa pode ouvir, invocar, ver ou sentir espíritos. Apesar disto, o espiritismo entende que a maioria das pessoas não desenvolve uma comunicação clara com espíritos por uma série de motivos abordados em obras como o Livro dos Espíritos e o Livro dos Médiuns e Evocadores. A partir daí, pode-se entender que indivíduos podem presenciar um "fenômeno mediúnico" e não crer, outros podem perceber tal tipo de fenômeno só um punhado de vezes durante a vida - Enfim a variedade de médiuns e relações com espíritos é enorme e impossível de descrever em um texto, então continuarei as observações:
"Na realidade, são os próprios Espíritos que fazem a propaganda (do espiritismo), auxiliados por inumeráveis médiuns que suscitam por todos os lados. Se eles tivessem tido um intérprete único, por mais favorecido que fosse, o Espiritismo mal seria conhecido. Esse intérprete mesmo, fosse de que classe fosse, teria sido objeto de prevenções por parte de muita gente."
Diferente do espiritismo brasileiro dos séculos 20 e 21, o movimento espírita que surgiu na França liderado de certa forma por Allan Kardec, não tinha federações nem instituições estaduais etc. Também não tinha médiuns palestrantes nem médiuns idolatrados como santos. Vale notar também que a classe a qual o médium pertence nada importa para o espiritismo, pois ele surge da relação dos espíritos (que não têm classe social nem econômica) com toda vastidão de seres humanos.
"O Espiritismo não tem nacionalidade. Ele é alheio a todos os cultos
particulares; ele não é imposto por nenhuma classe da Sociedade, pois
cada um pode receber instruções de parentes e amigos de além-túmulo. Era
preciso que ele assim fosse, para que pudesse chamar todos os homens à
fraternidade. Se ele não se tivesse colocado em terreno neutro, teria
mantido dissensões, em vez de apaziguá-las.
Essa universalidade do ensino dos Espíritos constitui a força do Espiritismo." (...)
Justamente por não ter classe alguma, o espiritismo não tem nacionalidade em sua essência. Ele surgiu na França porque o ser humano e o planeta onde ele vive obviamente estão submetidos ao espaço-tempo. Do mesmo modo surgiu em um período próximo (um pouco anterior) o espiritualismo nos EUA e, bem como em diversas outras culturas na Terra, surgiram povos ao longo da história que lidavam com espíritos (celtas na Europa, povos do oeste da África, "ameríndios" etc) - Os espíritos por um outro lado possuem um significante grau de independência do espaço e este é um dos motivos pelo qual eles podem se comunicar com qualquer ser humano em qualquer lugar.
A essência do espiritismo então é explicar os espíritos racionalmente e lidar com eles com ênfase na mesma perspectiva da consciência humana: a racional para além da mística (transcendental, extática) e da mítica (simbólica, poética/ artística etc). Não se trata de proibir experiências místicas, nem de invalidar narrativas míticas/ poéticas sobre os espíritos e a realidade espiritual, mas de preferir a perspectiva racional ao lidar com tais temas, em diálogo com a construção de conhecimento como veremos à seguir.
"O primeiro controle é, sem sombra de dúvida, o da razão, ao qual é preciso submeter, sem exceção, tudo quanto vem dos Espíritos. Toda teoria em manifesta contradição com o bom-senso, com uma lógica rigorosa" (...) deve ser rejeitada (...) Também não há garantia suficiente na conformidade obtida pelos médiuns de um mesmo centro, porque eles podem sofrer a mesma influência. A única séria garantia está na concordância que existe entre as revelações espontâneas feitas por intermédio de grande número de médiuns estranhos uns aos outros e em diversas regiões.
Entende-se então que toda mensagem dos espíritos deve ser avaliada racionalmente. Não se aceita qualquer coisa (sonhos ilógicos ou superficiais, mensagens fúteis ou pomposas etc), afinal os espíritos que entram em comunicação com os seres humanos são em sua maioria do mesmo nível da humanidade - tem suas falhas e possíveis interesses. Mas o quê seria contradizer o bom senso? Isto é respondido ao longo de várias obras de Kardec e dos espíritas de seu tempo: A racionalidade proposta pelo espiritismo está de acordo com a ética ensinada por Jesus e seus ensinamentos de solidariedade universal, moderação etc.
Compreende-se que aqui não se trata de comunicações relativas a interesses secundários, mas do que se liga aos princípios mesmos da doutrina. Prova a experiência que quando um princípio novo deve ter a sua solução, é ensinado espontaneamente em diversos pontos ao mesmo tempo e de maneira idêntica, senão na forma, ao menos no fundo.
As comunicações que tratam da universalidade geralmente tratam da ética - por ética entende-se os valores universais (justiça, equidade, benevolência etc) e não os individuais que incluem preferência, opiniões, tradições e costumes.
(...) "É essa unanimidade que faz caírem todos os sistemas parciais nascidos na origem do Espiritismo, quando cada um explicava os fenômenos à sua maneira, e antes que fossem conhecidas as leis que regem as relações entre o mundo visível e o invisível".
Nota-se que o espiritismo em sua origem buscava explicar a relação entre o "mundo perceptível" (o universo material, tridimensional etc) e o que está para além do sensorial - o espiritual. Aqui há uma semelhança (ao menos parcial) com as ideias de Platão, que Kardec em outros textos admite como um precursor do espiritismo, apesar de aparentemente não se aprofundar nas obras do filósofo da Grécia Clássica.
Tal a base em que nos
apoiamos quando formulamos um princípio da doutrina. Não o damos como
verdadeiro por estar em conformidade com as nossas ideias; não nos
colocamos absolutamente como árbitro supremo da verdade, e a ninguém
dizemos: “Crede nisto porque o dizemos.” Nossa opinião, aos nossos
olhos, não passa de uma opinião pessoal que pode ser justa ou falsa,
pelo simples fato de não sermos mais infalível que qualquer outro.
O espiritismo não é inquestionável; tanto que alguns pontos das obras espíritas tornaram-se obsoletos justamente por ter apresentado um teor regionalista e racista: Pouco diferindo da maioria esmagadora dos autores e estudiosos europeus do século 19, os espíritas franceses acreditavam em superioridade racial - uma ideia nociva do racismo científico que menosprezava povos negros da África e indígenas da América. Hoje, neste início de século 21, tal ideia é tida com razão como pseudocientífica. A classificação hierárquica das etnias humanas era admitida na ciência que, por sua vez, era alicerçada em pressupostos biologistas que sustentavam a investigação empírica como único meio absoluto de se chegar à verdade. Além disto, essa construção de conhecimento propagava uma historicidade linear (de evolução simplória e imprecisa) e eurocêntrica (como se os povos da Europa fossem superiores e mais evoluídos do que os demais) típica do positivismo daquela época.
O texto desta edição da Revista Espírita continua a tratar dos diferentes "níveis" de espíritos e como eles comunicam suas mensagens aos encarnados ("médiuns").
"Em suas revelações, os Espíritos superiores procedem com extrema sabedoria. Eles só abordam as grandes questões da doutrina gradativamente, à medida que a inteligência se torna apta a compreender verdades de uma ordem mais elevada, e que as circunstâncias sejam propícias à emissão de uma ideia nova. Eis por que, desde o começo, não disseram tudo, e até hoje não o disseram, jamais cedendo à impaciência de criaturas muito apressadas que querem colher os frutos antes de sua maturação." (...) "Os Espíritos levianos, no entanto, pouco se incomodando com a verdade, a tudo respondem. É por essa razão que sobre todas as questões prematuras, sempre há respostas contraditórias."
"Por mais bela, justa e grande que seja uma ideia, é impossível que,
desde o começo, alie todas as opiniões. Os conflitos daí resultantes são
consequência inevitável do movimento que se opera; são mesmo
necessários para melhor destacar a verdade, e é útil que ocorram no
começo, para que as ideias falsas sejam mais prontamente descartadas."
Enfim, o tema poderia se delongar em detalhes e mais detalhes. Mas o interessante do espiritismo é que ele não se limita a propagar mensagens éticas como as de Jesus, pois também faz a tentativa de explicar os fenômenos espirituais e a interação humana com espíritos, sejam através de "percepções" mentais, de "vozes" ou "visões" ou de outros modos. Esta é a tentativa de conciliar os ensinamentos de grandes líderes da filosofia e da religião, com o avanço da ciência. A base do espiritismo não vem de grandes líderes porque ele trabalha a possibilidade da interação com espíritos: o ser humano como espírito imortal que interage com outros espíritos imortais.