quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Espiritismo, uma Filosofia entre a Ciência, o Cristianismo e o Platonismo

 

Estive lendo alguns textos espíritas da segunda metade do século 19 (da época de Kardec) e apesar de uma linguagem meio técnica e antiga, notei argumentos interessantes que posicionam o espiritismo diante os saberes da humanidade. Aqui cito dois textos e comento eles em seguida: 

"Um dia, Deus, em sua inesgotável caridade, permitiu que o homem visse a verdade varar as trevas. Esse dia foi o do advento do Cristo. Depois da luz viva, voltaram as trevas. Após alternativas de verdade e obscuridade, o mundo novamente se perdia. Então, semelhantemente aos profetas do Antigo Testamento, os Espíritos se puseram a falar e a vos advertir. O mundo está abalado em seus fundamentos; reboará o trovão. Sede firmes! 
 O Espiritismo é de ordem divina, pois que se assenta nas próprias leis da natureza, e estai certos de que tudo o que é de ordem divina tem grande e útil objetivo. O vosso mundo se perdia; a ciência, desenvolvida à custa do que é de ordem moral, mas conduzindo-vos ao bem-estar material, redundava em proveito do espírito das trevas. Como sabeis, cristãos, o coração e o amor têm de caminhar unidos à ciência. O reino do Cristo, ah! passados que são dezoito séculos e apesar do sangue de tantos mártires, ainda não veio. Cristãos, voltai para o Mestre, que vos quer salvar. Tudo é fácil àquele que crê e ama; o amor o enche de inefável alegria. Sim, meus filhos, o mundo está abalado; os bons Espíritos vo-lo dizem sobejamente; dobrai-vos à rajada que anuncia a tempestade, a fim de não serdes derrubados, isto é, preparai-vos e não imiteis as virgens loucas, que foram apanhadas desprevenidas à chegada do esposo. 
 A revolução que se apresta é antes moral do que material. Os grandes Espíritos, mensageiros divinos, sopram a fé, para que todos vós, obreiros esclarecidos e ardorosos, façais ouvir a vossa voz humilde, porquanto sois o grão de areia; mas, sem grãos de areia, não existiriam as montanhas." 

 Kardec Respondendo ataques de cientistas materialistas: 
"Ninguém é bom juiz senão em assuntos de sua competência. Se quisermos construir uma casa, chamaremos um músico? Se estivermos doentes, preferiremos ser tratados por um arquiteto? Se tivermos um processo, aconselhar-nos-emos com um dançarino? Enfim, caso se trate de uma questão de teologia, pediremos a sua solução a um químico ou a um astrônomo? Não. Cada qual no seu ofício. As ciências vulgares repousam sobre as propriedades da matéria, que podemos manejar à vontade. Os fenômenos por ela produzidos têm como agentes forças materiais. Os do Espiritismo têm como agentes inteligências que possuem sua independência, seu livre-arbítrio, e de modo algum se submetem aos nossos caprichos. Escapam destarte aos nossos processos anatômicos ou de laboratório, bem como aos nossos cálculos e, por consequência, não são mais de alçada da ciência propriamente dita. A ciência errou, pois, ao querer experimentar os Espíritos como uma pilha de Volta. Ela partiu de uma ideia fixa, preconcebida, à qual se aferra e quer forçosamente ligar à ideia nova. Fracassou, e assim devia ser, porque agiu a partir de uma analogia que não existe. Depois, sem ir mais longe, concluiu pela negativa: julgamento temerário, que o tempo diariamente se encarrega de reformar, como reformou tantos outros, e aqueles que o pronunciarem, serão por sua vez sentenciados pela vergonha de haverem levianamente assumido uma posição falsa contra o infinito poder do Criador. Assim, pois, as corporações científicas não devem, nem deverão jamais pronunciar-se sobre o assunto, pois ele não é mais de sua alçada do que o direito de decretar que Deus existe. É, pois, um erro tomá-las como juiz. Mas quem será o juiz? Arrogam-se os espíritas o direito de impor as próprias ideias? Não. O grande juiz, o juiz soberano é a opinião pública, e quando essa opinião se formar pelo assentimento das massas e dos homens esclarecidos, os cientistas oficiais a aceitarão como indivíduos e se submeterão à força das circunstâncias. Deixemos passar uma geração e com ela os preconceitos do amor próprio que se obstina, e veremos acontecer com o Espiritismo o mesmo que aconteceu com tantas outras verdades combatidas e que atualmente seria ridículo pôr em dúvida. Hoje os crentes são chamados de loucos, amanhã assim serão chamados aqueles que não creem, exatamente como outrora eram considerados loucos os que acreditavam que a Terra gira, o que não a impediu de girar. “Dizem que os seres invisíveis se comunicam. Por que não? Antes da invenção do microscópio suspeitávamos da existência desses milhares de animálculos que causavam tanta devastação em nossa economia? Onde a impossibilidade material da existência, no espaço, de seres que escapam aos nossos sentidos? Acaso teríamos a ridícula pretensão de saber tudo e dizer a Deus que ele não nos pode ensinar mais nada? Se esses invisíveis que nos cercam são inteligentes, por que não se comunicariam conosco? Se estão em relação com os homens, devem representar um papel no destino e nos acontecimentos. Quem sabe se não serão uma das potências da Natureza, uma dessas forças ocultas que não suspeitamos? Que novo horizonte isto abre ao pensamento! Que vasto campo de observação! A descoberta do mundo invisível seria muito diversa da descoberta dos infinitamente pequenos. Seria mais que uma descoberta: seria toda uma revolução nas ideias. 
Quantas coisas misteriosas seriam explicadas! Os que nisto acreditam são levados ao ridículo, mas o que isto prova? Não aconteceu o mesmo com todas as grandes descobertas? Cristóvão Colombo não foi repelido, coberto de desgostos e considerado um insensato? Essas ideias, disseram, são tão estranhas que a razão as recusa. Teríamos rido na cara de quem, há somente meio século, tivesse dito que em apenas alguns minutos nos corresponderíamos de um a outro extremo do mundo; que em algumas horas atravessaríamos a França; que com o vapor de um pouco de água fervente um navio navegaria contra o vento; que da água seriam tirados os meios de iluminar e de aquecer? Se um homem se tivesse proposto iluminar toda Paris em um minuto, com uma única fonte de uma substância invisível, teria sido enviado ao hospício. Seria acaso mais prodigioso que o espaço fosse povoado de seres pensantes que, depois de haverem vivido na Terra, deixaram o se envoltório material? Não encontramos no fato a explicação de uma porção de crenças que remontam à mais alta Antiguidade? Não é a confirmação da existência da alma, de sua individualidade depois da morte? Não é a prova da própria base da religião? Mas a religião só vagamente nos diz o que se tornam as almas. O Espiritismo o define. Que podem objetar os materialistas e os ateus? Vale a pena aprofundar semelhantes coisas”. 
 Eis as reflexões de um cientista, mas de um cientista despretensioso. São também as de uma porção de homens esclarecidos, que refletiram, estudaram seriamente, sem ideias preconcebidas e tiveram a modéstia de não dizer: Não compreendo, portanto não existe. Sua convicção formou-se pela observação e pelo recolhimento. 
Há céticos que negam até a evidência e aos quais nem milagres convenceriam. Há mesmo os que ficariam muito aborrecidos se fossem obrigados a crer, pois o seu amor-próprio sofreria ao confessar que se enganaram. Que responder a criaturas que por toda parte não enxergam senão ilusão e charlatanismo? Nada. É preciso deixá-las tranquilas e dizerem, enquanto quiserem, que nada viram e, até, que nada lhes pudemos fazer ver. Ao lado desses céticos endurecidos, há os que querem ver a seu modo. Formada uma opinião, a esta tudo querem submeter, não compreendendo que haja fenômenos que não se submetam à sua vontade. Ou não sabem, ou não se querem curvar às condições necessárias. 
Aos olhos do observador atento e assíduo multiplicaram-se os fenômenos, confirmando-se reciprocamente, mas aquele que pensa que basta virar a manivela para movimentar a máquina, engana-se redondamente. Que faz o naturalista que deseja estudar os costumes de um animal? Acaso lhe ordena que faça isto ou aquilo, a fim de ter a oportunidade de observá-lo à vontade e conforme as suas conveniências? Não. Ele sabe perfeitamente que não será obedecido. Mas espia as manifestações espontâneas de seu instinto; espera-as e as observa de passagem. 
 O simples bom-senso nos mostra que, com mais forte razão, assim deve ser com os Espíritos, que são inteligências muito mais independentes que a dos animais." 

O Percurso da Filosofia e da Ciência - Onde se encaixa o Espiritsmo 
Nestes dois textos Kardec recua com a proposição de que o espiritismo é uma ciência (feita em outro texto seu). Importante notar que na época de suas publicações (1858-1869), o termo cientista era uma definição bastante recente, pois só em 1834 foi adotada tal palavra para substituir a terminologia anterior: Filósofo naturalista, ou filósofo natural. 
Embora existiram filósofos naturalistas antes de Sócrates e Platão, podemos considerar que a filosofia natural tem suas bases nos estudos de Aristóteles (século 3 a.C.) que separou-se de alguns conceitos mais mentalistas/ espiritualistas de Platão e Sócrates. As teorias aristotélicas foram sendo suprimidas durante o Império Romano, juntamente com a filosofia socrática/ platônica, praticamente desaparecendo da Europa após a queda do Império Romano Ocidental e certamente tendo como um dos últimos divulgadores, o sacerdote Agostinho de Hipona. A partir daí ela sobrevive na pandidakterion do Império Romano ("bizantino") e chega ao Império Omíada / Califado Rashidum (Árabe) no século 7 d.C, ganhando força entre os séculos 11 e 12, quando os Europeus voltam a estudá-la efetivamente mais ou menos durante o período de fundação das primeiras universidades (católicas) européias. Depois disto, a filosofia natural só começa a se desvincular da religião após o fim dos concílios entre a igreja católica romana e a católica ortodoxa em meados do século 15 (entre 1431 e 1438). Em 1687, o físico inglês, Isaac Newton, começa a busca de uma nova concepção de filosofia natural, com as bases mais matemáticas e materialistas e em 1690, o filósofo inglês, John Locke, lança o método empírico que viria a se consolidar como uma posição filosófica específica. Apesar do trabalho destes estudiosos, outras linhas de estudo surgiram em paralelo, desde o dualismo de René Descartes, até o mentalismo de vários outros filósofos que, de modo geral, concorreram com as demais filosofias. Como, só em 1834 os ingleses cunharam um termo que fomentaria a separação da ciência e filosofia, entende-se que o processo de distinção desta área do saber em relação à filosofia foi gradual e se estendeu aproximadamente até as três primeiras décadas do século 20 com a teoria da falseabilidade. 
 Resumidamente, pode-se entender que a ciência é composta por uma ontologia (que determina os pressupostos filosóficos) materialista e por uma epistemologia, ou seja, método de investigação, que trabalha com a reprodutibilidade das experiências e com evidências (sensoriais), enquanto a filosofia trabalha com conjecturas, racionalização e reflexões para se alcançar um entendimento, ou seja, permite conceitos além da demonstração física, perceptível pelos 5 sentidos humanos. Assim, podemos entender a filosofia como um amplo campo de estudos, ou uma área do saber, que de certo modo pode fazer o caminho ou o meio termo entre o saber religioso (espiritual, transcendental etc) e o saber científico. 
Neste caso, o que talvez Kardec não tivesse certeza, é que o espiritismo é mais uma filosofia do que uma religião ou uma ciência - exatamente porque tentou construir uma ponte entre os dois saberes: Na conclusão do 1ª texto aqui mencionado, Kardec (a mensagem tem características típicas das psicografadas) alega que a ciência até então havia se desenvolvido sacrificando a moral, ou seja, sobrepondo a importância da empatia solidária, deixando a importância dos bons sentimentos nas sociedades humanas em segundo plano! Ainda confirma que o "coração" e o amor têm que seguir unidos à ciência e alerta que virá a tempestade, possivelmente se referindo a frieza propagada pelo niilismo e pelo materialismo que colaborou com teorias eugenistas como o darwinismo social, teorias racistas e paranoicas como o nazismo e teorias punitivistas e brutais como o fascismo. Tudo isto resultou em uma busca inconsequente por riquezas marcada pela corrupção dos maiores bancos e corporações da Europa e EUA, pela partilha e invasão da África (1885 a 1914) e é claro em duas guerras mundiais (1914 a 1918 e 1939 a 1945)! Esta é toda uma realidade notável do fim do iluminismo e da era moderna, perceptível na época de Kardec e nas próximas 7 décadas... E pode-se considerar que não acabou, pois o progresso, que faz parte da evolução da espécie humana e de suas pulsões de vida, é constantemente ameaçado por impulsos de destruição e morte. Estas forças por trás do inconsciente de fato movem o comportamento humano, mas para os cientistas em geral elas são biológicas ou no máximo mentais, enquanto para os espíritas e espiritualistas, elas frequentemente podem ser algo a mais - transcendentais, ou seja, espirituais. 
No 2º texto, ao indicar (voluntariamente ou não) que o espiritismo está entre o saber religioso e o saber científico, Kardec aponta o espiritismo como uma filosofia. Isto realmente se faz necessário, uma vez que pouco a pouco, na história da filosofia, ela foi sendo reduzida, ou "devorada" pela ciência que nascia como o saber soberano, com pretensões de invalidar não só a filosofia, mas primariamente a religião junto de toda a espiritualidade. Este processo de "defensores da ciência" atacarem os demais saberes chega a seu ápice na primeira metade do século 20, onde filósofos liberais (no sentido econômico), como Karl Popper, membro da sociedade de Mont Perelin, atacaram praticamente todos os saberes de bases mentalistas e espiritualistas - desde Freud, passando por Jung até toda religião e espiritualidade real, ou seja, atacou os espíritas de lambuja. Para quem não sabe, a sociedade de qual o famoso filósofo participava foi um dos primeiros grupos ativistas neoliberais do mundo, cujo objetivo era suprimir todos movimentos de esquerda moderados ou extremistas (ou seja, era um grupo de extrema direita sob uma máscara de defensor da liberdade e de racionalidade científica). Este ataque a todos esses saberes serviu para manter a ciência nas bases newtonianas e no método empírico, deixando em segundo plano (intencionalmente ou não) teorias como as da relatividade de Einstein. 
Não é difícil então ver que o cenário mundial até a virada dos anos 50 aos 60 do século 20 era de tensão pós guerra mundial - Um cenário de medo de novos conflitos e de ameaças entre o ocidente predominantemente liberal/ capitalista contra o oriente mais socialista. Um ocidente ainda marcado pelos vestígios do imperialismo britânico, pela cobrança de produtividade e de consumo feita pelas grandes indústrias e corporações e pela ascensão das "potências mundiais" (EUA e URSS) cada vez mais intervencionista nos demais países. Uma ascensão intrusiva e exploratória sob a máscara de negócios internacionais e globalização por parte dos EUA e uma ascensão mais político-militar da URSS. 
A primeira mudança nos saberes deste período iniciou-se com a teoria geral dos sistemas, uma teoria científica surgida na área da biologia (mas que se expandiu para outras ciências) que considera a existência através de relações... O que por coincidência ou não, se aproxima da teoria da relatividade, de que a existência ocorre por... relações, como diz a própria etimologia da palavra. Estas teorias afastam-se da base materialista da ciência (ao cogitarem trabalhar com campos e ondas a níveis sub atômicos por exemplo), assim como também se distanciam do método empírico por serem menos práticas.
Enfim, este período pós guerras mundiais e de começo da guerra fria, fez eclodir os movimentos sociais dos anos 60 em variados países, que apesar de suas pautas bastante humanas (paz, amor, igualdade etc) ainda tem muito o que fazer, pois gerou poucos bons resultados, ou seja ainda não alcançou totalmente seus objetivos. 
Concluindo, como filosofia, parece que o espiritismo deve sofrer poucas mudanças devido a evolução da ciência. Talvez as mudanças principais devam ocorrer devido a alguns ajustes, ao revisar posturas antiquadas da época de sua fundação na segunda metade do século 19. Afinal se o espiritismo é uma filosofia complementar ao cristianismo e a ciência, buscando a união do amor com a ciência, ela jamais deve esquecer-se da importância de propagar o amor ao próximo, que significa o amor à toda humanidade e à toda criação. Jamais deve permitir que ocorram movimentos insensíveis ou cruéis sob a máscara de busca por justiça, progresso frio e/ ou apenas tecnológico ou qualquer outra mentira. O egoísmo penetra todas as áreas do saber: como materialismo na ciência, indiferença na filosofia, obscurantismo e ódio na religião e por isto a humildade é base para que se ocorra progresso verdadeiro nos 3 saberes. Esta humildade deve cessar rixas e permitir que o bem, seja na forma de um acolhimento crescente e/ ou na forma do amor, como citado no texto espírita, caminhe junto com a ciência. 

Fontes: 
O Evangelho segundo o espiritismo;
Revista Espírita de Estudos Psicológicos - junho de 1859; 
Encyclopedia Britannica, Higher Education in the Byzantine Empire, 2008, O.Ed.
História geral, moderna e contemporânea - Borges Hermida;

Leitura ecumênica de "as boas obras", "a oração" e "o amigo insistente"

Aqui continuo com os ensinamentos de Jesus, conforme os textos atribuídos a Mateus e a Lucas:  Fazer as boas obras discretamente (Mateus, Lu...