quinta-feira, 31 de agosto de 2023

A Relação entre Religião, Espiritualidade e Filosofia: Quais são as finalidades em Comum?

 

Espiritualidade e fé não são Religião 

Há quem diga que existem inúmeras espiritualidades e há quem diga que existem diferentes caminhos para se desenvolver a espiritualidade. Entendo que a segunda expressão faça mais sentido do que a primeira e farei uma breve explicação sobre isso: A espiritualidade é um termo que só passou a ser difundido a partir do século 20, pois antes disso só se utilizavam as palavras religião e religiosidade, ao menos na cultura ocidental (na Europa e nos países colonizados pelos europeus). Certamente isto se deve ao fato da dominância das religiões judaico-cristãs um tanto institucionalizadas sobre a cultura ocidental (destaque para as igrejas católicas e protestantes), que dificultavam o desenvolvimento de uma espiritualidade independente de igrejas e de rótulos. 

A espiritualidade é um termo abrangente que serve para indicar não só a religiosidade, mas também fé e a dedicação espiritual independente das religiões tão dominadas por hierarquias e cheias de dogmas. A espiritualidade então é o que há em comum entre as religiões fora de seus espaços institucionalizados, ou seja, fora das igrejas, dos templos e de grupos com líderes influentes - Ela faz a clara distinção entre fé / devoção espiritual e a utilização de argumentos religiosos como ferramenta de poder. Desta forma entende-se que a espiritualidade e sua abrangência é o que há em comum entre as religiões, não o que separa - A espiritualidade não discute visões particulares de mundo, não impõe regras sobre a fé alheia ou sobre as pessoas que não tem uma fé ou uma espiritualidade. Estando ligado ao que há de comum entre os ensinamentos espirituais, a espiritualidade certamente busca uma (re) ligação com o todo, assim não é preciso dizer que existem várias espiritualidades - É mais correto afirmar que existem diversos caminhos de desenvolvimento espiritual, mas a espiritualidade é uma só, independente de quantos recortes certas pessoas façam sobre o assunto. 

Um olhar da frente psicanalítica sobre a espiritualidade 

A frente psicanalítica de psicologia é constituída pela obra de diversos autores, sendo alguns dos mais famosos Sigmund Freud e Carl Gustav Jung. Os 2 autores que desenvolveram abordagens diferentes entre si, utilizam uma mesma base, o que permite-nos entender que ambos compartilham de uma visão da existência similar entre si - A teoria da mente e/ ou a ontologia das duas abordagens psicológicas (a psicanálise de Freud e a psicologia analítica de Jung) são essencialmente a mesma apesar de algumas diferenças nas terminologias. Ambas consideram que a psique, ou, o aparelho psíquico, é essencialmente constituído pelo consciente e pelo inconsciente. 

Freud particularmente tinha uma visão que ficava entre negativa e reducionista não só da religião, mas também da religiosidade e de sentimentos relacionados a esta, seja a fé, a espiritualidade etc. Jung de modo bem diferente era mais aberto à religiosidade e até estudou alguns de seus aspectos, não a considerando como um mero fator patológico. 

A época em que os 2 autores viveram (as 3 últimas décadas do séc 19 e as 3 primeiras do século 20) foi um período de grande crítica à tudo relativo a religião e à religiosidade dentro da academia e dos meios científicos - até as descobertas de Einstein e de Heisenberg e a difusão de suas teorias, o materialismo era praticamente a única base das ciências, ou seja o pressuposto filosófico/ "ontologia" dominante nas ciências - o que também mantinha o empirismo como único método válido de se construir conhecimento (praticamente reduzia a epistemologia ao saber científico, relegando a filosofia a um segundo plano, seja subordinada à ciência, ou excluída sem ser um saber válido). O "pai do positivismo", Auguste Comte, durante o século 19 tinha elevado a física como uma das ciências superiores (devido seu enfoque na objetividade), o que consequentemente deixava qualquer ciência humana como inferior - Resumidamente, neste processo que se deu no meio científico, muitos sociólogos e psicólogos buscaram argumentos materialistas para defender suas "visões científicas". Este possivelmente é um dos motivos pelo qual a obra de Wundt passou a ser gradativamente menosprezada, mesmo este sendo considerado o fundador da psicologia. 

 A aproximação que Freud faz do materialismo pode ser notada na centralidade das questões sexuais/ biológicas em sua teoria (libido, id, pulsão de vida...), porém sua teoria da mente, assim como a de Jung, ainda é aparentemente dualista - Em momento algum Freud identifica a mente como meramente neurológica, nem a localiza no sistema nervoso. Estas tentativas talvez tenham sido feitas por estudiosos de outras áreas das quais não me aprofundarei aqui. 

Neste quesito então, considero a teoria de Jung não totalmente condizente com o saber espiritual e/ou religioso, porém mais interdisciplinar ou menos reducionista, ao lidar com esta questão. Não utilizarei conceitos específicos de sua teoria como o inconsciente coletivo: Se necessário mencionarei somente sua base (a teoria da mente, os pressupostos filosóficos ou a ontologia) para entendermos a relação da psiquê com a espiritualidade. 

A Espiritualidade vai além de Palavras 

Este é um fato que dificulta qualquer estudo sobre a espiritualidade: Espiritualidade envolve elementos internos do ser humano, de sua psiquê e não envolve diretamente os aspectos mais racionais e sim o sentir e os sentimentos. Os sentimentos por sua vez são expressos por emoções (riso, choro, entonações vocais, gestos faciais, corporais etc). 

Ainda assim a psicologia pode investigar alguma porção da mente e como esta lida com a espiritualidade. Pois uma vez que todo ser humano existe na realidade material e interage com seu meio (social etc), a espiritualidade inevitavelmente envolve questões filosóficas como ética, ontologia (visão do ser e do existir) etc. A psicologia nasceu da filosofia e diversos autores desde Wundt até os fenomenólogos devem ter reconhecido isto. Jung, por sua vez, estuda os valores, embora mais os individuais do que os universais. 

Vamos nos ater então a questão ética da espiritualidade: A espiritualidade pode existir separadamente do(s) valor(es) universais? Certamente não. Ao menos não se levarmos em conta o que há em comum entre os ensinamentos espirituais de cada "religião": Todos eles levam em conta, para não dizer, centralizam seus objetivos, em valores universais, tais como humildade, solidariedade, paciência, auto conhecimento (talvez o zelo, no ocidente), a devoção, a serenidade, o amor, a esperança etc. Nem todos esses nomes individualmente irão aparecer nas diferentes religiosidades ou caminhos espirituais, mas muitos deles surgem indicando no mínimo uma intersecção entre tais caminhos, crenças e/ ou práticas espirituais. 

Estes pontos de intersecção não aparecem somente e isoladamente no início de cada percurso / prática espiritual - Eles surgem desde o início até os fins, ou "objetivos" de cada religiosidade - por isto reafirmo que a espiritualidade é algo universal, pois todos caminhos espirituais nascem com determinadas semelhanças e convergem em um valor universal. É por este mesmo motivo que surgiram movimentos ecumênicos ao longo da história da humanidade - muitas pessoas viram essas intersecções, semelhanças e convergências entre diferentes religiões e caminhos espirituais! 

O que o ser humano adquire ao se dedicar à espiritualidade? 

Dedicar-se à espiritualidade é devotar-se, percorrer um caminho sem se contradizer, em sintonia e/ou busca com valores universais sem voltar atrás - valores estes, que estão além dos individuais. Embora cada indivíduo possa valorizar tal e tal coisa (objeto, ser vivo, grupo, sentimento, estudo etc), os valores universais, como mencionei em outro texto (https://nea-ekklesia.blogspot.com/2023/08/psique-e-importancia-dos-valores.html), são aqueles que não só são bem absorvidos pelo indivíduo, como também têm utilidade geral para toda a humanidade e sua coexistência harmoniosa e diversa. 

A dedicação ou devoção é necessária porque tais valores não surgirão repentinamente nem são absorvidos instantaneamente pelas pessoas. O processo é mental (de sentir, refletir, meditar etc) e também prático, ou seja, de vivenciar e realizar tais ensinamentos em relação ao meio e "ao próximo", ou seja, às demais pessoas. Neste percurso o praticante da espiritualidade, seja ela qual for, vai deixando de lado os interesses mesquinhos, em sua maioria (obviamente) materiais. Isto mostra o quão a "religiosidade" materialista é uma farsa: A realidade interna de cada ser, de cada psiquê, mente ou alma, não é material: É sentimento, pensamento (etc...) como mencionei em diversos textos meus. Expressões da religiosidade materialista, ou seja, que mostram-se centralizadas na matéria perceptível, são essencialmente teologias da prosperidade, como por exemplo, as pregadas por coachs quânticos que idolatram a meritocracia e por pastores que prometem recompensas materiais e enriquecimento de seus fiéis. A realidade material/ perceptível tem sua importância, porém jamais pode ser o centro de uma espiritualidade - esta realidade é um meio, não um fim. Interesses materiais nem sempre estão conectados a um grande mal, porém sempre dão abertura à mesquinharia, portanto à malícia. 

Abertura ao erro: Desprezo pela inocência e aceitação da malícia 

O que é malícia exatamente? Há um antônimo desta palavra? 


 Resultado da busca por antônimos de malícia no Google...

Isto é peculiar: não existe a palavra "benícia" como um antônimo exato, porque a malícia é uma palavra utilizada para males (supostamente pequenos) que se misturam ou se transvestem de esperteza... Talvez mais curioso ainda é que este é um ponto claramente oposto ao desenvolvimento espiritual, seja do cristianismo, do budismo ou de qualquer espiritualidade real, que busque o (um) valor universal. A malícia de modo geral, "reduz" o outro, e isto pode ser feito de variadas maneiras. Seguem alguns exemplos: 

Desrespeitando o conhecimento ou "nível" intelectual da pessoa, tratando-a como estúpida; 

Pressupondo (de pré supor) inferioridade referente ao(s) outro(s), seja racial, espiritual, cultural ou qualquer outra; 

Priorizando uma utilidade fugaz (temporária, imediatista) no indivíduo, seja para aquisição de um bem, de um serviço (utilitarismo) ou de um prazer sexual (sexismo); 

Ignorando a lealdade e/ ou os sentimentos do próximo, enganando-o ou não cumprindo com um acordo... 

Dificilmente a malícia separa-se destes temas e mais dificilmente ainda, alguém que pratica qualquer destes atos, estará se dedicando à espiritualidade. A malícia então torna-se aceitável em determinados círculos sociais sob uma máscara de identidade de grupo, de intelectualidade ou mesmo de naturalidade. Tais ambientes são geralmente tomados por algum nível de hipocrisia, falácia ou de outras atitudes similares a estas. Isto é comum de acontecer não só em ambientes onde não se dedica à espiritualidade, é claro, pois os locais não garantem caráter nem atitudes virtuosas por parte de seus frequentadores. Mais ainda, é público e notório que existem templos e vertentes religiosas inteiras tomadas por discursos de ódio, de mentiras, de fomentação de cisões/ rivalidades e por outras atitudes distantes ou mesmo contrárias a valores universais. 

O fato é que a busca da assimilação de valores universais, seja filosófica ou espiritual, é um processo de purificação - purificação esta que nada tem de cerimonial ou ritualística: é um processo predominantemente mental, porém também de prática, ou seja, de atitudes e ações. Embora o termo purificação possa parecer utópico, ou mesmo polêmico por parecer algo elitista ou exclusivamente "sacro", a purificação é um termo válido quando feita algumas comparações e reflexões: Tal pureza não difere muito do conceito de pureza popularmente atribuído à criança, podendo ser em algum nível similar ou sinônimo de inocência; Certamente buscar/ desenvolver e alcançar uma pureza mental é algo difícil pois difere da criança que "nasce com tal característica". Além disto, infelizmente grande parte de nossas sociedade atual pode e parece tratar inocência como algo pejorativo (consideram tolice etc), mesmo sendo um dos princípios básicos do direito, por exemplo. 

Porém uma grande tolice é considerar a inocência ou a pureza mental como algo inútil/ pejorativo. Algumas pessoas poderiam argumentar que a pessoa com tal característica tem uma fraqueza mental, porém isto é uma grande falácia: é possível ser "puro" ou inocente e também ser inteligente, sábio e/ou ter grande força de vontade. É esta combinação que difere o adulto inocente da criança inocente - a criança ainda não tem conhecimento, sabedoria nem nada similar a isto, pois ela é altamente dependente de seus pais/ cuidadores. 

Purificar-se então não é buscar ser um santo, ou um indivíduo mentalmente isolado do resto da humanidade: é simplesmente eliminar da própria psique, tudo que faz mal a si mesmo e ao próximo - Substituir tais atitudes por algo que traz o bem às outras pessoas e buscar um progresso nesta jornada. É buscar viver e difundir valores universais, como justiça, equidade, empatia, solidariedade, esperança entre outros que citei neste e em outros textos. 

 

Leitura ecumênica de "as boas obras", "a oração" e "o amigo insistente"

Aqui continuo com os ensinamentos de Jesus, conforme os textos atribuídos a Mateus e a Lucas:  Fazer as boas obras discretamente (Mateus, Lu...