quinta-feira, 23 de outubro de 2025

O espiritismo e sua base universal

 A seguir trago interessantes pontos sobre o que conhecemos como espiritismo... mas não o espiritismo brasileiro: Os trechos comentados a seguir são da Revista Espírita e Jornal de Estudos Psicológicos de 04/1864, lançadas na França do século 19;


"Quis Deus que a nova revelação chegasse aos homens por uma via mais rápida e mais autêntica. Eis por que encarregou os Espíritos de levá-la de um a outro polo, manifestando-se por toda parte, sem dar a ninguém o privilégio exclusivo de ouvir a sua palavra. Um homem pode ser enganado, pode mesmo enganar-se, mas assim não poderia ser quando milhões de homens veem e ouvem a mesma coisa. É uma garantia para cada um e para todos. Ademais, pode-se fazer um homem desaparecer, mas não se pode fazer desaparecerem as massas; pode-se queimar livros, mas não se pode queimar os Espíritos."

Não abordarei neste momento sobre a questão de possível teor religioso aqui, como Deus e revelação; Isto porque devo começar pelo surgimento do espiritismo a partir da existência do espírito como alma (não só) humana imortal e sua respectiva consequência nos "fenômenos mediúnicos". 

O texto alega que o espiritismo nasce de uma série de fenômenos, os quais a doutrina classifica como mediúnicos. Não há necessidade de se entender ao pé da letra: por "milhões" de pessoas que enxergam e/ ou ouvem a mesma coisa, entende-se os mediuns - eles estão por toda parte, porque médium não é um ser excepcional que recebeu um dom raríssimo nem são determinados indivíduos treinados em algum centro espírita: Todo ser humano é médium em algum grau, seja menor ou maior. Outras obras do espiritismo indicam que qualquer pessoa pode ouvir, invocar, ver ou sentir espíritos. Apesar disto, o espiritismo entende que a maioria das pessoas não desenvolve uma comunicação clara com espíritos por uma série de motivos abordados em obras como o Livro dos Espíritos e o Livro dos Médiuns e Evocadores. A partir daí, pode-se entender que indivíduos podem presenciar um "fenômeno mediúnico" e não crer, outros podem perceber tal tipo de fenômeno só um punhado de vezes durante a vida - Enfim a variedade de médiuns e relações com espíritos é enorme e impossível de descrever em um texto, então continuarei as observações:

"Na realidade, são os próprios Espíritos que fazem a propaganda (do espiritismo), auxiliados por inumeráveis médiuns que suscitam por todos os lados. Se eles tivessem tido um intérprete único, por mais favorecido que fosse, o Espiritismo mal seria conhecido. Esse intérprete mesmo, fosse de que classe fosse, teria sido objeto de prevenções por parte de muita gente."

Diferente do espiritismo brasileiro dos séculos 20 e 21, o movimento espírita que surgiu na França liderado de certa forma por Allan Kardec, não tinha federações nem instituições estaduais etc. Também não tinha médiuns palestrantes nem médiuns idolatrados como santos. Vale notar também que a classe a qual o médium pertence nada importa para o espiritismo, pois ele surge da relação dos espíritos (que não têm classe social nem econômica) com toda vastidão de seres humanos.

"O Espiritismo não tem nacionalidade. Ele é alheio a todos os cultos particulares; ele não é imposto por nenhuma classe da Sociedade, pois cada um pode receber instruções de parentes e amigos de além-túmulo. Era preciso que ele assim fosse, para que pudesse chamar todos os homens à fraternidade. Se ele não se tivesse colocado em terreno neutro, teria mantido dissensões, em vez de apaziguá-las.

Essa universalidade do ensino dos Espíritos constitui a força do Espiritismo.
" (...) 

Justamente por não ter classe alguma, o espiritismo não tem nacionalidade em sua essência. Ele surgiu na França porque o ser humano e o planeta onde ele vive obviamente estão submetidos ao espaço-tempo. Do mesmo modo surgiu em um período próximo (um pouco anterior) o espiritualismo nos EUA e, bem como em diversas outras culturas na Terra, surgiram povos ao longo da história que lidavam com espíritos (celtas na Europa, povos do oeste da África, "ameríndios" etc) - Os espíritos por um outro lado possuem um significante grau de independência do espaço e este é um dos motivos pelo qual eles podem se comunicar com qualquer ser humano em qualquer lugar. 

A essência do espiritismo então é explicar os espíritos racionalmente e lidar com eles com ênfase na mesma perspectiva da consciência humana: a racional para além da mística (transcendental, extática) e da mítica (simbólica, poética/ artística etc). Não se trata de proibir experiências místicas, nem de invalidar narrativas míticas/ poéticas sobre os espíritos e a realidade espiritual, mas de preferir a perspectiva racional ao lidar com tais temas, em diálogo com a construção de conhecimento como veremos à seguir.

"O primeiro controle é, sem sombra de dúvida, o da razão, ao qual é preciso submeter, sem exceção, tudo quanto vem dos Espíritos. Toda teoria em manifesta contradição com o bom-senso, com uma lógica rigorosa" (...) deve ser rejeitada (...) Também não há garantia suficiente na conformidade obtida pelos médiuns de um mesmo centro, porque eles podem sofrer a mesma influência. A única séria garantia está na concordância que existe entre as revelações espontâneas feitas por intermédio de grande número de médiuns estranhos uns aos outros e em diversas regiões.

Entende-se então que toda mensagem dos espíritos deve ser avaliada racionalmente. Não se aceita qualquer coisa (sonhos ilógicos ou superficiais, mensagens fúteis ou pomposas etc), afinal os espíritos que entram em comunicação com os seres humanos são em sua maioria do mesmo nível da humanidade - tem suas falhas e possíveis interesses. Mas o quê seria contradizer o bom senso? Isto é respondido ao longo de várias obras de Kardec e dos espíritas de seu tempo: A racionalidade proposta pelo espiritismo está de acordo com a ética ensinada por Jesus e seus ensinamentos de solidariedade universal, moderação etc. 

Compreende-se que aqui não se trata de comunicações relativas a interesses secundários, mas do que se liga aos princípios mesmos da doutrina. Prova a experiência que quando um princípio novo deve ter a sua solução, é ensinado espontaneamente em diversos pontos ao mesmo tempo e de maneira idêntica, senão na forma, ao menos no fundo. 

As comunicações que tratam da universalidade geralmente tratam da ética - por ética entende-se os valores universais (justiça, equidade, benevolência etc) e não os individuais que incluem preferência, opiniões, tradições e costumes.

(...) "É essa unanimidade que faz caírem todos os sistemas parciais nascidos na origem do Espiritismo, quando cada um explicava os fenômenos à sua maneira, e antes que fossem conhecidas as leis que regem as relações entre o mundo visível e o invisível"

Nota-se que o espiritismo em sua origem buscava explicar a relação entre o "mundo perceptível" (o universo material, tridimensional etc) e o que está para além do sensorial - o espiritual. Aqui há uma semelhança (ao menos parcial) com as ideias de Platão, que Kardec em outros textos admite como um precursor do espiritismo, apesar de aparentemente não se aprofundar nas obras do filósofo da Grécia Clássica.

Tal a base em que nos apoiamos quando formulamos um princípio da doutrina. Não o damos como verdadeiro por estar em conformidade com as nossas ideias; não nos colocamos absolutamente como árbitro supremo da verdade, e a ninguém dizemos: “Crede nisto porque o dizemos.” Nossa opinião, aos nossos olhos, não passa de uma opinião pessoal que pode ser justa ou falsa, pelo simples fato de não sermos mais infalível que qualquer outro.  

O espiritismo não é inquestionável; tanto que alguns pontos das obras espíritas tornaram-se obsoletos justamente por ter apresentado um teor regionalista e racista: Pouco diferindo da maioria esmagadora dos autores e estudiosos europeus do século 19, os espíritas franceses acreditavam em superioridade racial - uma ideia nociva do racismo científico que menosprezava povos negros da África e indígenas da América. Hoje, neste início de século 21, tal ideia é tida com razão como pseudocientífica. A classificação hierárquica das etnias humanas era admitida na ciência que, por sua vez, era alicerçada em pressupostos biologistas que sustentavam a investigação empírica como único meio absoluto de se chegar à verdade. Além disto, essa construção de conhecimento propagava uma historicidade linear (de evolução simplória e imprecisa) e eurocêntrica (como se os povos da Europa fossem superiores e mais evoluídos do que os demais) típica do positivismo daquela época. 

O texto desta edição da Revista Espírita continua a tratar dos diferentes "níveis" de espíritos e como eles comunicam suas mensagens aos encarnados ("médiuns").

 "Em suas revelações, os Espíritos superiores procedem com extrema sabedoria. Eles só abordam as grandes questões da doutrina gradativamente, à medida que a inteligência se torna apta a compreender verdades de uma ordem mais elevada, e que as circunstâncias sejam propícias à emissão de uma ideia nova. Eis por que, desde o começo, não disseram tudo, e até hoje não o disseram, jamais cedendo à impaciência de criaturas muito apressadas que querem colher os frutos antes de sua maturação." (...) "Os Espíritos levianos, no entanto, pouco se incomodando com a verdade, a tudo respondem. É por essa razão que sobre todas as questões prematuras, sempre há respostas contraditórias."

"Por mais bela, justa e grande que seja uma ideia, é impossível que, desde o começo, alie todas as opiniões. Os conflitos daí resultantes são consequência inevitável do movimento que se opera; são mesmo necessários para melhor destacar a verdade, e é útil que ocorram no começo, para que as ideias falsas sejam mais prontamente descartadas."

Enfim, o tema poderia se delongar em detalhes e mais detalhes. Mas o interessante do espiritismo é que ele não se limita a propagar mensagens éticas como as de Jesus, pois também faz a tentativa de explicar os fenômenos espirituais e a interação humana com espíritos, sejam através de "percepções" mentais, de "vozes" ou "visões" ou de outros modos. Esta é a tentativa de conciliar os ensinamentos de grandes líderes da filosofia e da religião, com o avanço da ciência. A base do espiritismo não vem de grandes líderes porque ele trabalha a possibilidade da interação com espíritos: o ser humano como espírito imortal que interage com outros espíritos imortais. 

 

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

O que a Bíblia tem de coerente com Jesus

 Depois de anos vendo supostos cristãos contradizendo frequentemente os ensinamentos de Jesus, decidi escrever este texto.

Há cerca de 30 anos eu estava consideravelmente imerso em uma religião cristã: a católica apostólica romana. Isto porque minha mãe recebeu educação católica de minha avó e criou eu e meus irmãos nesta religião, algo que vinha no mínimo de minha bisavó. Todas elas apresentavam diferenças entre si no que diz respeito a viver os ensinamentos de Jesus e falar sobre tal tema: O que ouvi dizer sobre minha bisavó é que ela era conservadora católica fervorosa. Minha avó que pouco conheci, foi descrita por minha mãe, como mais caridosa e tolerante do que minha bisavó. Por fim, mamãe frequentou a igreja por muitos anos e ocasionalmente falava de coisas relacionadas aos ensinamentos de Jesus. 

Durante a infância então, por volta do período do catequismo (uns 11 anos de idade), eu lia bastante a bíblia - principalmente os 4 evangelhos que contavam "a vida" e os ensinamentos de Jesus. Eram os textos que mais faziam sentido para mim, embora eu me ocupasse com as coisas de criança, como brincar etc... Lembro-me de ficar entediado com as missas após um ano frequentando-as fielmente, pois percebi que o conteúdo se tornava repetitivo e às vezes eu achava que os padres focavam muito em assuntos dos quais eu duvidava se realmente eram abordados pelos ensinamentos de Jesus.

No fim de minha adolescência entendi que a igreja católica, como qualquer outra igreja, tem uma história constituída por muitos religiosos de atitudes bem distantes das de Jesus. Estudar a história de Jan Hus e das revoltas hussitas, me deixou claro que a igreja é só uma instituição formada por homens falhos - ela não garante nada de bom/ nada do amor ensinado por Jesus. Jan Hus foi perseguido e morto pelos poderosos europeus do séc 15 porque difundiu os ensinamentos de Jesus, que eram centrados na humildade, no amor solidário e na esperança, questionando a igreja e os poderosos. Embora o protestantismo tenha surgido com a proposta de reformar a igreja/ o cristianismo durante o séc 16, ainda no mesmo século os protestantes tomaram posições de poder na Europa e passaram a perseguir outros religiosos, como por exemplo, na Inglaterra. As igrejas, sejam as católicas ou as protestantes, hoje chamadas de evangélicas, de neopentecostais ou simplesmente de "cristãs", são em sua maioria instituições de poder. 

Voltei a ler a bíblia pelo velho testamento somente anos após terminar o ensino médio. Comparei tais textos com a história e vi as diferenças entre religião e ciência. Estas diferenças não são um antagonismo, mas mostram algumas incoerências, lacunas e coerências entre os dois saberes. Depois comparei as religiões umas com as outras: principalmente as antigas como a "mitologia" grega e a "mesopotâmica" com o velho testamento - ou seja, comparei o judaísmo com aquelas religiões do passado. Esta comparação me fez entender que o judaísmo, ou "velho testamento", era algo mais coerente do que as histórias absurdas das religiões politeístas da antiguidade (classificadas como mitologias posteriormente). Todas histórias, sejam do judaísmo, do politeísmo grego ou do mesopotâmico, tinham coisas estranhas, é claro, mas aqui vale começar as observações:

A religião politeísta grega que li, me pareceu a mais acessível das mitologias ou sistemas religiosos antigos: ela é supostamente baseada nas poesias helênicas de Homero e Hesíodo. É composta de um corpo de textos mais ou menos coerente no que se diz respeito às genealogias de entidades (deuses), mas obviamente cheias de exageros, de contos de excessos, descontrole e até de machismo (que era normal na época entre os séculos 8 e 6 antes de Cristo). Os contos absurdos do antigo politeísmo grego e suas poesias não diferiam muito das bizarrices da "mitologia" nórdica. Autores helênicos renomados em um período posterior ao dos antigos poetas (a Grécia clássica, no século 4 a.C.) viriam a criticar estes mitos/ poesias de diferentes maneiras. Enquanto os filósofos naturalistas (pré socráticos) fizeram críticas buscando explicar fenômenos naturais, Sócrates e Platão fizeram críticas buscando uma construção do conhecimento (epistemologia) ética, ou seja, focada na bondade (kalos), na justiça, na temperança (sophrosyne) e na coragem (andreas). Como tanto os "pré socráticos" como os socráticos buscavam a(s) verdade(s), estas críticas não eram meramente destrutivas, mas não detalharei elas neste texto.

Por um outro lado, não encontrei nada aparentemente útil, justo ou bom na "mitologia" mesopotâmica: Os deuses mesopotâmicos como Anu, Enlil, Enki (entre outros) participavam de histórias de conspirações, traições e outras coisas similares aos mitos gregos. Mesmo o "herói" Gilgamesh tem notórios traços de uma pessoa ambiciosa e pouco ética; seu parceiro Enkidu parecia mais humilde ou justo, mas não é o protagonista da história/ mito.

Claro que estas religiões estavam ligadas a determinadas culturas e civilizações e a comparação que eu fiz entre elas foi mais como fenômeno filosófico (ético) e de espiritualidade (ou religiosidade) do que social/ regional. Vendo tudo isto, ficou nítido que o judaísmo, ou "velho testamento" contém histórias que buscam mais uma ética em relação aos mitos gregos e mesopotâmicos. Porém nenhum dos textos e seus respectivos ensinamentos é perfeito, certamente porque foram escritos por humanos e tinham as limitações de seu tempo - são obras de 6 a 15 séculos antes de Cristo. 

As mudanças de ideais sobre o que é certo e errado, o que é bom e mau, não são meramente individuais: elas servem também à vida coletiva dos seres humanos e mesmo nos textos religiosos isso é perceptível. Tais mudanças muitas vezes ocorrem gradualmente e tocam questões éticas frequentemente. Um grande marco típico no desenvolvimento da ética do ser humano e em seus resultados perceptíveis na sociedade (através das leis, costumes, ritos, cultura etc) é quando diferenças oriundas de grande concentração de poder são reduzidas, seja esse poder econômico, político e/ ou religioso. Esse desenvolvimento é particular em algum nível porque é do ser humano como indivíduo com seus respectivos interesses, intenções e interpretações, mas também é social e coletivo pois perpassa o convívio entre seres humanos, suas trocas, suas leis, suas crenças/ sentido de vida etc. Obviamente o desenvolvimento ético não é meramente linear - ele ocorre também de modo oscilante com altos e baixos, seja por causa de revoluções nas sociedades ou por causa de colapsos de civilizações, de economias, de religiões etc. Quando tratamos o aspecto religioso do ser humano e de suas sociedades é inevitável abordamos as crenças, o sentido de vida e as experiências transcendentais ou místicas. Muitos dos aspectos "milagrosos" das religiões e da espiritualidade tocam estes últimos temas, mas os ensinamentos religiosos ou espirituais também envolvem questões para além do indivíduo, como as questões sociais. Isto é notório desde o velho testamento: Moisés traz não só as leis de Deus, mas tantas outras leis para a sociedade hebraica de séculos antes de Cristo. Isaías e outros profetas tocam questões inevitavelmente sociais/ coletivas como a equidade... E assim também faz Jesus. 

O velho testamento porém trata de várias questões particulares de séculos antes de Cristo: é absurdo descolar estes textos da época em que foram escritos e da sociedade que eles tratavam. Os textos do velho testamento são obras judaicas (daquele povo da região do Levante/ costa oeste da Ásia/ às margens do Mar Mediterrâneo), das quais as mais antigas que sobreviveram ao passar do tempo datam por volta do século 9 a.C. Certamente a religião judaica e o conteúdo do velho testamento são mais antigos do que isso, pelo simples fato do ser humano ser capaz de transmitir tradições e conhecimentos de maneira oral, através do diálogo e do contar histórias para seus sucessores. Então o que é atemporal (imutável, que não perde valor com o tempo ou com particularidades culturais e individuais) nos textos do velho testamento? Uma explicação racional sobre a imutabilidade (e assim, da atemporalidade também) é dada por Platão, filósofo da Grécia clássica que questionou os contos religiosos de sua época e do passado. Platão, que dialogou com a obra de outros filósofos (pitagóricos, Parmênides, Anaxágoras etc), afirma que as excelências (ou virtudes) como a justiça, a bondade/ a beleza (kalos), a temperança e a coragem são ideias (eidos) imutáveis. Isto porque além delas não serem deterioráveis (são psíquicas, alcançáveis pelo ser humano em sua atividade cognoscente), elas são universais: servem ao coletivo de seres humanos, como por exemplo, às cidades, aos estados (às pólis) etc. 

O que serve ao coletivo de seres humanos através do tempo é a equidade, a justiça, a solidariedade... tópicos que também aparecem em alguns pontos do velho testamento. Porém, no velho testamento há ensinamentos voltados para os povos da antiguidade (sejam chamados de hebraicos, judeus etc) vivendo entre as eras do bronze e do ferro, cercado por impérios que constantemente entravam em guerra com várias civilizações de seus arredores. A violência fazia parte do cotidiano, principalmente através de guerras com motivos mesquinhos; a imposição de ideias, de culturas e leis certamente também eram comuns. Apesar de apresentar algumas ideias éticas como repudiar o assassinato, defender a equidade, entre outras, grande parte dos ensinamentos do velho testamento são voltados às dificuldades daquela época antiga e por isso são pouco ou nada úteis para a atual civilização do século 21, pois a sociedade, seus costumes, leis e outras características mudaram.

Jesus por um outro lado centraliza os seus ensinamentos não em tradições sociais, mas em valores universais. De modo similar à ênfase de Platão, Jesus ensina o que é bom para todo o ser humano, desde a um nível individual até o nível onde é possível ver os frutos: o nível social/ coletivo. Jesus ainda dá a ênfase no sentimento, particularmente do Amor, como nenhum outro indivíduo parece ter feito antes. Isto faz dele mais acessível às massas que Platão, pois o filósofo ensina o caminho da construção de conhecimento ético via diálogo: Essa construção de conhecimento do fundador da filosofia ocidental é um método mais racional que visa o bem coletivo/ social, mas dialoga com os mitos e as experiências místicas, enquanto Jesus parece dar a ênfase no viver um amor esperançoso, humilde e universal. A evolução que ocorria lentamente nas religiões da antiguidade ganha um impulso mais repentino com Sócrates e Platão na Grécia e com Jesus na província romana da Judéia. Jesus, de origem humilde, pregou seus ensinamentos entre o povo possivelmente oprimido do oriente do Império Romano: um povo enganado por sacerdotes judeus gananciosos (fariseus, escribas, saduceus etc) e desprezado e dominado pelo poder romano, seja pela classe militar, política ou econômica. Seus ensinamentos sobre viver um amor universal geralmente não exigem explicações longas ou aprofundadas e talvez por isso fosse fácil de se propagar entre as massas, ou seja, a maioria das pessoas que eram pobres, de origem humilde ou de vida simples. 

Mas e o restante da bíblia? Jesus marca o início do que os cristãos chamam de "novo testamento" da bíblia. Os demais textos do novo testamento então foram feitos por sucessores de Jesus, sejam eles os apóstolos Pedro, Mateus, João, Paulo e/ ou quaisquer outros. Estes textos tratam dos ensinamentos de Jesus, mas certamente voltam a tratar de questões de época: desta vez do século 1, período em que os apóstolos viveram. Ignorar o período em que foram escritos é mais um absurdo, seja por parte de cristãos, ou por parte de outros indivíduos, sejam ateus ou outros religiosos e espiritualistas. É absurdo para os religiosos cristãos porque é colocar Paulo e os demais apóstolos no mesmo nível de Jesus (que é Deus para católicos e evangélicos) e é absurdo para outros indivíduos porque é ignorar que Jesus enfatizou ensinamentos éticos, enquanto apóstolos posteriores como Paulo, já buscavam meios de conciliar os ensinamentos de Jesus com a sociedade do século 1. Um exemplo importante é a afirmação de Paulo sobre os efeminados: para o apóstolo, estes indivíduos não terão o reino dos céus. Mas quem eram os efeminados da época e do local em que Paulo viveu? Certamente ler só as cartas de Paulo para entender isso é correr um risco de cometer um erro grosseiro. Até onde me lembro, ao estudar a história do Império Romano (onde Paulo viveu), efeminados eram uma classe de prostitutos! Sim, homens que se prostituíam e não meros homossexuais ou bissexuais como entendemos hoje, 21 séculos depois da morte de Paulo!! Infelizmente vemos pastores evangélicos pregando contra homossexuais (e os demais LGBTQIA+) neste início de séc 21, usando textos de Paulo e do velho testamento. Além disto, Jesus diz aos sacerdotes/ religiosos de seu tempo, que até mesmo os cobradores de impostos e as prostitutas estão a frente deles no reino dos céus. Isso porque as prostitutas acreditaram nos ensinamentos de João Batista (que batizou Jesus), enquanto os fariseus e outros sacerdotes negavam os ensinamentos de Jesus e seu amigo, para manterem uma posição de privilégio na sociedade. 

Jesus viveu ensinando maior parte do tempo nas ruas, sem um lar, criticando os ricos, mas sem defender a pobreza em si. Era uma vida de óbvio desapego aos bens materiais e firme convicção no amor universal de solidariedade constante. Jesus entrou poucas vezes em templos religiosos (as sinagogas da Judéia romana): Quando adulto, entrou no templo dos nazarenos, mas acabou escorraçado por estes e noutra vez elogiou a pobre mulher que, em sua fé, deixou todo seu dinheiro no cofre de doações; Em mais uma visita, seus discípulos se admiram com o esplendor do templo religioso, enquanto Jesus apenas explica que o templo será destruído pela ação do tempo e dos conflitos de interesses mundanos. Possivelmente a mais emblemática entrada de Jesus em um templo religioso, é quando ele expulsa os mercadores da fé que se aproveitavam da religião e da crença das pessoas para obter dinheiro e lucro. Em mais de uma passagem, Jesus diz que as pessoas estão com o "coração endurecido", devido ao fato de não quererem ver nem viver o amor solidário e universal que ensinava. Jesus viveu uma vida simples de amor. 

Por fim, o texto do Apocalipse, também do novo testamento é cheio de expressões figuradas e simbolismos. Isto por si só já o diferencia dos ensinamentos de Jesus, pois apesar de usar eventuais parábolas, Jesus é claro nos ensinamentos de solidariedade, amor, humildade e esperança. O Apocalipse é uma série de visões místicas ou transcendentais de modo similar às visões do profeta Ezequiel, mostradas no "velho testamento". A numerologia é presente de maneira nítida: 7 trombetas, dragão de 7 cabeças, 4 cavaleiros, 4 bestas etc... Nada disso deve sobrepor a ênfase dos ensinamentos de Jesus, que diz "nem meu Pai julga"! E infelizmente o que vemos entre evangélicos são pastores (e seguidores) pregando sobre o inferno, sobre satanás, quem será condenado etc. A visão simbólica e marcante que João teve é particular e para não sobrepor os ensinos de Jesus, ela deve servir para o mesmo se aprimorar espiritualmente. Este aprimoramento espiritual com simbolismos numerológicos existe em outras culturas pelo mundo, como na hindu por exemplo, onde há os 7 chacras e serviria para João se aproximar de Jesus espiritualmente. A serpente bem como o dragão é presente em inúmeros textos e simbolismos religiosos através do tempo pelo mundo: Hércules derrotando a Hidra no mito grego, Thor enfrentando Jorgurmandr no mito nórdico, fora os mitos hititas, eslávicos, japoneses (etc) que também apresentam algum deus ou herói vencendo um tipo de serpente ou dragão. Esta simbologia da vitória sobre a serpente ou sobre um réptil similar à serpente certamente significa a vitória contra o que envenena nossa mente, nossa alma - E para dialogar com a ética, seja ensinada por Jesus, por Platão ou por qualquer outro, a vitória sobre a serpente deve ser a superação do indivíduo sobre o egoísmo, e tudo que se opõe à solidariedade, à moderação, à justiça etc. Quando o anjo explica sobre reis e povos relacionados a prostituta e à fera escarlate de 7 cabeças e 10 chifres, ele deixa claro que o nome "Babilônia" é meramente simbólico - pouco importa uma localização na Terra. O anjo ainda diz que o cordeiro vencerá (Jesus e seu ensinamento) e que "a besta era" e "já não é mais". Sendo assim, pouco importa reis, prostitutas e dragões - a mensagem para João é de afastamento do egoísmo e superação do descontrole/ dos exageros em prol da solidariedade, da humildade e da esperança, enfim em prol dos ensinamentos de Jesus. Certamente por tratar um caminho que perpassa os sentimentos e a subjetividade humana, o Apocalipse é altamente mítico e místico com pouca racionalidade - estas perspectivas de consciência devem se pautar sempre pela ética e o amor de Jesus é ético porque é universal: é para todos os seres humanos, pois todos são filhos de Deus.

Após a primeira geração de apóstolos, gradativamente surgiram os textos sobre os ensinamentos de Jesus e sobre os cristãos do final da antiguidade. 2 séculos depois da morte de Jesus, seus seguidores, os cristãos, ainda eram perseguidos. Registros históricos eram escassos: cartas entre Plínio e o imperador Trajano só confirmaram a existência dos cristãos, sem menções diretas à Jesus. Nas catacumbas romanas por um outro lado, são deixados registros importantes: imagens de Jesus, de Maria e também de personagens das religiões greco-romanas: um possível sincretismo, já que os cristãos conviviam em uma sociedade que já tinha séculos de tradição religiosa politeísta, de filosofia etc. O cristianismo não era uma ideologia isolada e invulnerável à interpretações: várias vertentes (arianos, valentinianos etc) surgiram após a primeira geração de apóstolos e antes da primeira "grande reunião" de cristãos que viria a acontecer.

No início do século 4, Constantino é o primeiro imperador a se interessar pelo cristianismo e o conturbado Império Romano já havia se fragmentado algumas vezes com constantes disputas pelo poder. Constantino convocou o primeiro concílio de bispos que definiu o nome "católico" para os cristãos, além de propagar a idéia de Jesus sendo co-substancial com Deus (ou qualquer coisa assim, que não detalharei neste texto). As perseguições aos cristãos foram proibidas, o que deveria ser bom, mas poucas décadas depois ocorreu a primeira perseguição de cristãos sobre outros religiosos. No ano de 380, o imperador Teodósio declara o cristianismo (católico) como a religião de estado e aí temos um óbvio problema se formando... Outros "concílios" passam a acontecer nos séculos seguintes e várias vertentes do cristianismo são suprimidas, chegando a ocorrer incineração de obras... As religiões católicas e até mesmo as protestantes/ evangélicas mantiveram vários dogmas criados nestes concílios e por "pais da igreja" que viveram várias gerações depois de Jesus. Apesar disto ainda é possível ler os 4 evangelhos que tratam dos ensinamentos de Jesus e descartar todos os dogmas religiosos. É possível viver, ou ao menos se esforçar em viver mais e mais próximo de Jesus, assim como é possível ler e dialogar sobre a construção de conhecimento ética de Platão. Tudo começa na mente humana ao ler, ao entender, ao dialogar e ao expressar... e então gera frutos no meio, na sociedade, em proporções maiores ou menores.

Não deveria ser difícil entender e por em prática os ensinamentos de Jesus; Não deveria ser difícil ser ético em mentalidade e em ações, nem em fé ou esperança... Se pautar pelo mal ou pelo defeito de outros é fácil, mas é nocivo, seja a curto prazo ou a longo prazo, porque o que faz bem, faz bem à todos: são os ensinamentos de Jesus que diferem não de tudo, mas de muita coisa do velho testamento. Os evangelhos (as "boas novas", termo que vem de eu-angelos, ou seja, boa mensagem) de Marcos, Mateus, João e Lucas, são suficientes para entender os ensinamentos de Jesus. Independente da origem do título Cristo (que pode significar tanto bom, como ungido) por qual Jesus passou a ser conhecido, os cristãos se nomeiam a partir deste título de Jesus. Eles deveriam ler estas boas mensagens de Jesus - elas são o suficiente para entender seus ensinamentos e a lei divina, que é de solidariedade, humildade e esperança - é de um amor universal. Se a mensagem de Jesus não parecer suficientemente compreensível, dificilmente o "velho testamento" será tão ou mais compreensível quanto... Se os 4 evangelhos que contam os ensinamentos de Jesus não explicassem como pensar e praticar o amor divino, porque as cartas de Paulo explicariam?

 

domingo, 15 de junho de 2025

Leitura sobre Últimos encontros com Jesus

Ressurreição e aparição a Maria Madalena (Mateus, Marcos, Lucas, João)

Eis que no primeiro dia da semana, houve um violento tremor de terra: um anjo do Senhor desceu do céu, rolou a pedra e sentou-se sobre ela. Resplandecia como um relâmpago e suas vestes eram claras como a neve. Vendo isto, os guardas pensaram que morreriam de pavor.

E Maria Madalena, Maria e algumas outras (Salomé) foram ao sepulcro de madrugada (quando amanhecia), levando as especiarias (aromas para ungir) que tinham preparado. Sendo ainda escuro, viram a pedra tirada do sepulcro. E entrando não acharam o corpo do senhor Jesus.

Correram, pois, e foram a Simão Pedro, e ao(s) outro(s) discípulo(s), a quem Jesus amava, e disse-lhes: Levaram o Senhor do sepulcro, e não sabemos onde o puseram. E eram Maria Madalena, Joana, Maria, mãe de Tiago, e as outras que com elas estavam, as que diziam estas coisas aos apóstolos. Enquanto elas voltavam, alguns homens da guarda já estavam na cidade para anunciar o acontecimento aos príncipes dos sacerdotes. Reuniram-se estes em conselho com os anciãos e deram aos soldados uma importante soma de dinheiro, ordenando-lhes: Vós direis que seus discípulos vieram retirá-lo à noite, enquanto dormieis. Se o governador vier a sabê-lo, nós o acalmaremos e vos tiraremos de dificuldades. Os soldados receberam o dinheiro e seguiram suas instruções. E esta versão é ainda hoje espalhada entre os judeus. 

Então Pedro saiu com o outro discípulo, e foram ao sepulcro. E os dois corriam juntos, mas o outro discípulo correu mais apressadamente do que Pedro, e chegou primeiro ao sepulcro. E, abaixando-se, viu no chão os lençóis; todavia não entrou.

Chegou, pois, Simão Pedro, que o seguia, e entrou no sepulcro, e viu no chão os lençóis,

E que o lenço, que tinha estado sobre a sua cabeça, não estava com os lençóis, mas enrolado num lugar à parte. Então entrou também o outro discípulo, que chegara primeiro ao sepulcro, e viu, e creu. Porque ainda não sabiam a Escritura, que era necessário que ressuscitasse dentre os mortos. Tornaram, pois, os discípulos para casa.

Magdalena (e Maria) estava(m) chorando fora, junto ao sepulcro. Estando ela, pois, chorando, abaixou-se para o sepulcro.

E viu dois anjos vestidos de branco (resplandecente), assentados onde esteve o corpo de Jesus, um à cabeceira e outro aos pés.

E disseram-lhe eles: Mulher, por que choras? Maria Magdalena lhes disse: Porque levaram o meu Senhor, e não sei onde o puseram.  E o anjo disse-lhes: Não temais! Não está aqui, mas ressuscitou. Lembrai-vos como vos falou; Dizendo: Convém que o Filho do homem seja entregue nas mãos de homens pecadores, e seja crucificado, e ao terceiro dia ressuscite.

E, tendo dito isto, voltou-se para trás, e viu Jesus em pé, mas não sabia que era Jesus.

Disse-lhe Jesus: Mulher, por que choras? Quem buscas? Ela, cuidando (pensando) que era o hortelão, disse-lhe: Senhor, se tu o levaste, dize-me onde o puseste, e eu o levarei.

Disse-lhe Jesus: Maria! Ela, voltando-se, disse-lhe: Raboni, que quer dizer: Mestre. Aproximaram-se elas, e prostradas diante dele, beijaram-lhe os pés.

Disse-lhe Jesus: Não me detenhas, porque ainda não subi para meu Pai, mas vai para meus irmãos, e dize-lhes que eu subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus.

Maria Madalena foi (com Joana e Maria, mãe de Tiago) e anunciou aos (aflitos e chorosos) discípulos que vira o Senhor, e que ele lhe dissera isto. Quando souberam que Jesus vivia e que ela tinha visto, não quiseram acreditar (pois lhes pareceu um delírio).


Jesus aparece para Maria Magdalena e Maria (sua mãe) de acordo com os apóstolos Mateus e Lucas, mas Marcos e João alegam que ele surgiu primariamente apenas para Magdalena. Em todo caso, a passagem mostra o protagonismo das mulheres - elas que permaneceram junto a cruz onde Jesus foi pregado, foram as primeiras a procurarem Jesus e as primeiras a receberem sua “visita”. 

Maria Magdalena que fôra liberta de “7 demônios” por Jesus, possivelmente recebia uma atenção especial. É possível que ela fosse considerada a décima segunda apóstola por Jesus, mesmo porque o filho de Deus já havia previsto que Judas Iscariotes era um traidor antes mesmo de ser capturado. João ressalta que Jesus a chama pelo nome quando aparece diante dela, certamente indicando o amor puro que sentia por ela.  

Jesus também diz que ainda não subiu para o seu Pai, indicando uma relação com a idéia que ainda não fôra ao reino dos céus. Isto pode ser interpretado como o fato dele realmente estar encarnado pelo fato de ter ressuscitado, porém os espíritas interpretam esta cena e as cenas seguintes de Jesus, como visões, ou seja, o espírito dele estaria visitando seus apóstolos. É uma discussão supérflua, que deixa de lado os temas principais do cristianismo: O amor.  


Os discípulos de Emaús (Marcos, Lucas)

Mais tarde ele apareceu sob outra forma a 2 entre eles que iam para o campo; Nesse mesmo dia, dois discípulos caminhavam para uma aldeia chamada Emaús, distante de Jerusalém sessenta estádios. Iam falando um com o outro sobre tudo o que se tinha passado. Enquanto iam conversando e discorrendo entre si, o mesmo Jesus se aproximou deles e caminhava com eles. Mas os olhos estavam-lhes como que vendados e não o reconheceram.

Perguntou-lhes então: De que estais falando pelo caminho e porque estais tristes?

Um deles, chamado Cléofas, respondeu-lhe: És tu acaso o único forasteiro em Jerusalém que não sabe o que aconteceu esses dias?

Perguntou-lhe: Que foi?

Disseram: A respeito de Jesus de Nazaré… Era um profeta poderoso em obras e palavras diante Deus e de todo o povo. Os nossos sumos sacerdotes e os nossos magistrados o entregaram para ser condenado à morte e o crucificaram. Nós esperávamos que fosse ele quem havia de restaurar Israel, e agora, além de tudo isso, é hoje o terceiro dia que sucederam estas coisas. É verdade que algumas mulheres entre nós nos alarmaram. Elas foram ao sepulcro, antes do nascer do sol; e não tendo achado seu corpo, voltaram dizendo que tiveram uma visão de anjos, os quais asseguravam que está vivo. Alguns dos nossos foram ao sepulcro e acharam assim como as mulheres tinham dito, mas a ele mesmo não viram.

Jesus lhes disse: Ó gente sem inteligência (néscia)! Como sois tardos de coração para crerdes tudo o que anunciaram os profetas! Porventura não era necessário que Cristo sofresse estas coisas e assim entrasse na sua glória? E começando por Moisés, percorrendo todos profetas, explicava-lhes o que dele se achava dito em todas as Escrituras.

Aproximaram-se da aldeia para onde iam e ele fez como se quisesse passar adiante. Mas eles forçaram-no a parar: Fica conosco, já é tarde e já declina o dia. Então entrou com eles. Aconteceu que, estando sentado conjuntamente à mesa, ele tomou o pão, abençoou-o e partiu-o, e os olhos o reconheceram… mas ele desapareceu. Diziam então um para o outro: Não se nos abrasava o coração, quando ele nos explicava as escrituras?

Levantaram-se na mesma hora e voltaram a Jerusalém. Aí acharam reunidos os onze e os que com ele estavam. Todos diziam: O Senhor ressuscitou verdadeiramente e apareceu a Simão. Eles, por sua parte, contaram o que lhes havia acontecido no caminho e como tinham reconhecido ao partir o pão, mas estes (os onze) tampouco acreditaram.  


Esta passagem aparece muito resumidamente “em Marcos” e mais detalhada nos textos atribuídos a Lucas. Interessante notar como Cléofas e o outro apóstolo descreveram Jesus como um profeta e também como eles esperavam que ele fosse restaurar a nação de Israel, afinal esta sucumbiu muitos anos antes e a região se encontrava sob domínio do Império Romano.

Cléofas e seu colega também afirmaram que a execução de Jesus era algo publicamente conhecido na região; Jesus por sua vez, em tom crítico, reprova a tristeza deles: Eles deviam saber que Jesus sofreria o que sofreu e que Israel não seria restaurada por ele - Isso porque a ênfase de Jesus sempre foi na lei de amor (piedade, solidariedade, equidade etc) e não em nacionalismos e outras convenções humanas mundanas.  

Por fim, Jesus abençoa o pão, partindo-o e desaparece diante os 2 apóstolos; As religiões católica e protestante predominantemente entendem essas aparições de Jesus como um personagem encarnado (em carne e osso), enquanto o espiritismo explica que elas foram manifestações do espírito de Jesus. Quaisquer obras físicas feitas por Jesus durante “suas aparições” então, de acordo com o espiritismo, teriam sido realizadas através de seu perispírito: o “fluido” (possivelmente radiação eletromagnética) produzido pelo espírito e que serve também como o elo entre este (a alma) e corpo quando encarnado. Uma diferença irrelevante entre as narrativas das passagens de Jesus, porém que incita paixões e ódios quando discutida entre fanáticos de quaisquer tipos.


Aparição aos Discípulos (Mateus, Marcos, Lucas, João)  

Enquanto ainda falavam destas coisas, na tarde do mesmo dia, que era o primeiro da semana, os discípulos tinham fechado as portas do lugar onde se achavam, por medo dos judeus. Jesus veio e pôs-se no meio deles, quando estavam sentados à mesa, dizendo: “A paz esteja convosco!” 

Perturbados e espantados, pensavam estar vendo um espírito. Mas ele lhes disse: 

Por que estais perturbados, e por que estas dúvidas em vosso corações? Vede minhas mãos e meus pés, sou eu mesmo. Dito isto, mostrou-lhes as mãos e o lado. 

Os discípulos se alegraram ao ver o Senhor. 

E (Jesus) censurou-lhes a incredulidade e a dureza de coração, por não acreditarem aos que o tinham visto ressuscitado. E disse-lhes: Ide por todo o mundo e pregai o evangelho (as boas mensagens) a toda criatura. Quem for batizado será salvo, mas quem não crer, será condenado. Estes milagres acompanharão os que crerem: expulsarão os demônios em meu nome, falarão novas línguas, manusearão serpentes e, se beberem algum veneno mortal, não lhes fará mal; imporão as mãos aos enfermos, e eles ficarão curados.

Depois lhes disse: Isto é o que eu vos dizia quando ainda estava convosco, era necessário que se cumprisse tudo o que de mim está escrito na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos. Abriu-lhes então o espírito, para que compreendessem as Escrituras, dizendo: Assim é que está escrito, e assim era necessário que Cristo padecesse, mas, que ressurgisse dos mortos no terceiro dia, e que em seu nome pregasse a penitência e a remissão dos pecados em todas nações, começando por Jerusalém. Vós sois as testemunhas de tudo isso. Eu vos mandarei o Prometido de meu Pai; entretanto permanecei na cidade, até que sejais revestidos de força do alto.

Tomé, um dos doze, chamado Dídimo, não estava com eles quando veio Jesus. 

Os outros discípulos disseram-lhe: Vimos o Senhor.

Mas ele replicou-lhes: Se não vir nas suas mãos o sinal dos pregos e não puser o meu dedo no lugar dos pregos nem introduzir minha mão no seu lado, não acreditarei.

Oito dias depois estavam os discípulos outra vez no mesmo lugar e Tomé com eles. Estando trancadas as portas, veio Jesus, pôs-se no meio deles e disse:

A paz esteja convosco!

E dizendo isso mostrou-lhes as mãos e os pés. Depois disse a Tomé:

Introduz aqui teu dedo e vê minhas feridas. Põe a tua mão no meu lado. Apalpai e vêde: um espírito não tem carne nem ossos, como vedes que eu tenho. Não sejas incrédulo, mas homem de fé. 

Mas, vacilando eles ainda e estando transportados de alegria, perguntou:

Tendes aqui algo para comer?

Então lhe ofereceram um pedaço de peixe assado. Ele tomou e comeu a vista deles.

Respondeu-lhe Tomé: Meu Senhor e meu Deus!

Disse-lhe Jesus: Creste, porque me viste. Felizes aqueles que crêem sem ter visto!


A aparição de Jesus aos seus discípulos na sala onde faziam a refeição é mencionada nos textos de Marcos, de Lucas e de João. Somente João menciona que o ambiente está fechado/ trancado e que Tomé só viu Jesus, 8 dias após os demais discípulos.

Aqui a sequência está misturada/ trocada: O trecho em que Jesus come o pedaço de peixe é citado só no texto de Lucas, como se Jesus estivesse provando a todos que se manifestou em carne e osso. Marcos, que parece ser mais sucinto, não cita nada disso e João mostra que Jesus só é mais enfático para provar sua presença materializada diante Tomé, pois os demais apóstolos não eram tão céticos quanto o “Dídimo”.

As igrejas católicas e protestantes (evangélicas) classificam tal cena como parte da ressurreição de Jesus. O espiritismo explica que é um tipo de fenômeno mediúnico causado pelo espírito de Jesus que é o mais próximo de Deus: assim Jesus tem o poder de, através de seu perispírito, criar uma forma corpórea idêntica ao seu corpo, através do que Kardec no século 19 estipulava ser um tipo de fluido magnético e/ ou elétrico. Hoje sabemos que o magnetismo e a eletricidade não se manifestam por um fluido e sim por campos/ ondas, pois o eletromagnetismo é radiação, porém a ciência com seus respectivos métodos e pressupostos não podem investigar nem explicar tais fenômenos: geralmente ela parte de que só existe a matéria/ o espaço tridimensional e nada espiritual. Talvez coubesse uma explicação filosófica que possui um método de investigação puramente racional e dialético. Ainda assim a explicação filosófica deveria ter a ética e seu(s) valor(es) universais como pressuposto.

Esses detalhes de como ocorreu a "ressureição" de Jesus, seja a versão das igrejas, do espiritismo ou de qualquer outra espiritualidade ou filosofia, pouco importam pois não tratam dos ensinamentos de Jesus sobre seu amor solidário de coração (mente/ espírito) e de ações. 

Jesus pediu para que os apóstolos pregassem o “evangelho” por todo o mundo. A palavra "evangelho" é grega em sua origem e talvez nem fosse conhecida por Jesus. Dificilmente ele usaria esta palavra como foi escrita nas bíblias nas línguas gregas, latina, portuguesa ou inglesa - ele possivelmente pronunciou um termo como “boa mensagem” ou “boa novidade” (algo equivalente a "ev - angelos") se referindo aos seus ensinamentos de amor divino. Isto vale ser citado para lembrar que Jesus propagou um ensinamento pautado na amizade entre todos humanos - o amor é um bom sentimento, e o que Jesus pregou foi o amor universal - equitativo entre toda a humanidade. Por isso ele disse para João não repreender quem propagasse seus ensinamentos mesmo que este não fosse um discípulo e por isso Jesus citou um estrangeiro como "o próximo" a ser amado e também por isso elogiou o centurião que se mostrou humilde mesmo pertencendo a outra cultura (romana).

Discutir como ocorreu a cena da aparição aos discípulos exatamente ou bradar que somente a sua versão (de sua respectiva religião etc) é correta, é um daqueles assuntos que geram discórdias e disputas que contradizem os ensinamentos do próprio Jesus. Ao longo da história, aproximadamente entre os séculos 4 e 11, os concílios da igreja calaram muitas vozes de cristãos independentes de sua centralização e destruíram muitas obras que discutiam temas como estes e outros semelhantes. Os concílios em grande parte mostraram-se mais imposições e opressões do que conciliações, justamente porque não tinham a ética do amor universal de Jesus como finalidade.

Mesmo a reforma da igreja fomentada por Lutero no século 16, ainda perpetuou dogmas que não estavam centrados nos ensinamentos de Jesus e seu amor universal, ou seja, de diálogo coletivo - Jesus não condenava outros que pregavam seus ensinamentos.


Aparição na Galiléia (Mateus, João)

Os onze discípulos foram para a Galiléia, para a montanha que Jesus lhes tinha designado. Depois disso, tornou Jesus a manifestar-se aos seus discípulos junto ao lago de Tiberíades, deste modo:

Estavam juntos Simão Pedro, Tomé, Natanael (que era de Caná da Galiléia), os filhos de Zebedeu (João e Tiago) e outros dois de seus discípulos. Disse-lhes Simão Pedro: Vou pescar.

Responderam-lhe eles: Também nós vamos contigo. Partiram e entraram na barca. Naquela noite, porém, nada apanharam. Chegada a manhã, Jesus estava na praia. Quando o viram, adoraram-no, entretanto, alguns (discípulos não o conheceram) hesitavam ainda.  

Perguntou-lhes Jesus: Amigos, não tendes acaso alguma coisa para comer?

“Não” Responderam-lhe.

Disse-lhes ele: Lançai a rede ao lado direito da barca e achareis.

Lançaram-na e já não podiam arrastá-la por causa da grande quantidade de peixes.

Então aquele discípulo que Jesus amava, disse a Pedro: É o Senhor! Quando Simão Pedro ouviu dizer que era o Senhor, cingiu-se com a túnica (porque estava nu)e lançou-se às águas. Os outros discípulos vieram na barca, arrastando a rede dos peixes (pois não estavam longe da terra, senão cerca de 200 côvados). Ao saltarem em terra, viram umas brasas preparadas e um peixe em cima delas, e pão.

Disse-lhes Jesus: Trazei aqui alguns dos peixes que agora apanhastes. Subiu Simão Pedro e puxou a rede para terra, cheio de 153 peixes grandes. Apesar de serem tantos, a rede não se rompeu.

Disse-lhes Jesus: Vinde e comei.

Nenhum dos discípulos ousou perguntar quem és tu? pois bem sabiam que era o Senhor. Mas Jesus aproximando-se, tomou o pão, lhes deu, e do mesmo modo o peixe. (Então) lhes disse:

Toda autoridade me foi dada no céu e na terra. Ide, pois ensinai a todas as nações, batizai-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Ensinai-as a observar tudo o que vos prescrevi. Eis que estou convosco todos os dias, até o fim do mundo.

Esta já era a terceira vez que Jesus se manifestava aos seus discípulos, depois de ter ressuscitado.


Mateus e João falam de uma manifestação de Jesus aos seus discípulos na Galiléia; porém o primeiro só menciona a fala de Jesus sobre a importância de se espalhar seus ensinamentos, enquanto o segundo mostra mais um milagre. A autoridade de Jesus indicada por Mateus não contradiz necessariamente seu amor que é o mesmo de Deus que não julga seus filhos, ou seja, não julga vida alguma. É uma autoridade adquirida por Jesus viver os ensinamentos do amor universal de seu Pai - afinal como Deus não amaria TODA a sua criação? Aquele que vive o amor de corpo e alma, ou seja, na prática em suas ações e também na mentalidade sincera, vive os ensinamentos de Jesus e a lei de Deus. Jesus viveu na humildade, sem acumular bens, sem objetificar pessoa alguma, ajudando os mais necessitados e estabelecendo regras para um convívio pacífico entre pessoas de todas as nacionalidades.  

O batismo mencionado no texto de Marcos e de Mateus, é um ritual existente desde a primeira religião abraâmica - o judaísmo (embora outras religiões também possam ter rituais de iniciação similares ou equivalentes). Mostra-se um rito simbólico de purificação; Simbólico porque trabalha elementos da natureza como a água e sua interação com o corpo, mas não se limita a isso: é uma passagem onde o batizado é introduzido ou comprometido na fé da religião em particular. Mais importante que o ato físico, seja qual for, é a mentalidade sincera dos envolvidos (seja por parte do que batiza ou de ambos: o batista e o batizado). Essa mentalidade é pautada pela lei divina que é de amor a todos, uma vontade e um compromisso com o amor universal de Deus.


Profissão de amor de Pedro (Apêndice, conclusão de João)

E, depois de terem jantado, disse Jesus a Simão Pedro: Simão, filho de Jonas, amas-me mais do que estes? E ele respondeu: Sim, Senhor, tu sabes que te amo. Disse-lhe: Apascenta os meus cordeiros.

Tornou a dizer-lhe segunda vez: Simão, filho de Jonas, amas-me? Disse-lhe: Sim, Senhor, tu sabes que te amo. Disse-lhe: Apascenta as minhas ovelhas.

Disse-lhe terceira vez: Simão, filho de Jonas, amas-me? Simão entristeceu-se por lhe ter dito terceira vez: Amas-me?

E disse-lhe: Senhor, tu sabes tudo; tu sabes que eu te amo.

Jesus disse-lhe: Apascenta as minhas ovelhas. Na verdade, na verdade te digo que, quando eras mais moço, te cingias a ti mesmo, e andavas por onde querias; mas, quando já fores velho, estenderás as tuas mãos, e outro te cingirá, e te levará para onde tu não queiras. E disse isto, significando com que morte havia ele de glorificar a Deus. Dito isto, disse-lhe: Segue-me.

E Pedro, voltando-se, viu que o seguia aquele discípulo a quem Jesus amava, e que na ceia se recostara também sobre o seu peito, e que dissera: Senhor, quem é que te há de trair?

Vendo Pedro a este, disse a Jesus: Senhor, e deste que será?

Disse-lhe Jesus: Se eu quero que ele fique até que eu venha, que te importa a ti? Segue-me tu.

Divulgou-se, pois, entre os irmãos este dito, que aquele discípulo não havia de morrer. Jesus, porém, não lhe disse que não morreria, mas: Se eu quero que ele fique até que eu venha, que te importa a ti?


Jesus pede a Pedro para que este conduza os cristãos. E quando Pedro pergunta sobre “o discípulo que perguntou quem trairia Jesus”, é possível que ele se refira a João (Evangelista). É aceito que João era o mais jovem dos apóstolos e o que mais viveu…


Ascenção (Marcos, Lucas)

Depois (que o Senhor Jesus lhes falou) os levou para Betânia e, levantando as mãos, os abençoou. Enquanto abençoava, separou-se deles e foi levado (arrebatado) ao céu e está sentado à direita de Deus. Depois de terem o adorado, voltaram para Jerusalém com grande júbilo e permaneceram no templo, louvando e bendizendo a Deus.

Os discípulos partiram e pregaram por toda parte. O Senhor cooperava com eles e confirmava a sua palavra com milagres que a acompanhavam.


Como um ensinamento de amor, a palavra de Jesus e de seus discípulos não poderia ser meramente racional: necessita de expressão de sentimento, eis o porquê de adorar e louvar.


O espiritismo e sua base universal

 A seguir trago interessantes pontos sobre o que conhecemos como espiritismo... mas não o espiritismo brasileiro: Os trechos comentados a se...