segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Leitura Ecumênica da Tentação no Deserto

Os apóstolos Marcos, Mateus e Lucas mencionam que Jesus se retirou por dias no deserto e ali resistiu às tentações, como mostrado a seguir.

Tentação no Deserto (Mateus 4: 1-11, Marcos 1: 12-13, Lucas 4: 1-13) 

"Então foi conduzido Jesus pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo diabo. 

E, tendo jejuado quarenta dias e quarenta noites, depois teve fome; 

Chegando-se a ele o tentador, disse: Se tu és o Filho de Deus, manda que estas pedras se tornem em pães. 

Jesus, porém, respondendo, disse: Está escrito: Nem só de pão viverá o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus. 

Então o diabo o transportou à cidade santa, e colocou-o sobre o pináculo do templo, e disse-lhe: Se tu és o Filho de Deus, lança-te de aqui abaixo; porque está escrito: Que aos seus anjos dará ordens a teu respeito, E tomar-te-ão nas mãos, Para que nunca tropeces com o teu pé em alguma pedra. 

Disse-lhe Jesus: Também está escrito: Não tentarás o Senhor teu Deus. 

Novamente o transportou o diabo a um monte muito alto; e mostrou-lhe todos os reinos do mundo, e a glória deles. E disse-lhe: Tudo isto te darei se, prostrado, me adorares. 

Então disse-lhe Jesus: Vai-te, Satanás, porque está escrito: Ao Senhor teu Deus adorarás, e só a ele servirás. 

Então o diabo o deixou; e, eis que chegaram os anjos, e o serviam."

Esta é uma passagem notoriamente mística, ou em outra linguagem, é uma cena bastante espiritual. Santa Tereza d’Ávila, uma mística cristã que viveu na Espanha durante o século 16, afirmou que quanto mais pura, ou mais empenhada no bem / na lei divina de amor, a pessoa for, mais o(s) opositor(es) a cobiçarão. Trata-se do tema do bem e do mal além da vida terrestre - em uma dimensão espiritual. 

Kardec diz que os espíritos impuros desistem de tentar enganar ou seduzir uma alma muito boa, mas voltarão a espreitá-la na busca de uma oportunidade. Ele jamais confirmou a existência de um "opositor a Deus diametralmente poderoso", pois isso seria dualismo, não monoteísmo.

A passagem de Jesus no Deserto não difere muito destas explicações. Considerando a pureza e a missão de Jesus Cristo, entende-se tais cenas e tais explicações: A prática do bem sempre tem suas dificuldades e é muito importante ter comprometimento para não não ser seduzido. Abandonar o bem para dedicar-se à mesquinharia e ao egoísmo, obviamente é um erro, ou seja, um pecado. Na Terra mesmo é possível notar que os erros que mais causam estragos amplos e profundos nos seres humanos ou até mesmo nas demais formas de vida do planeta, surgem a partir de indivíduos em posição de poder: 

Um líder religioso corrompido pode afetar não só todos os fiéis de sua religião, mas também pode incitar intolerância e ódio que causam conflitos com outras religiões ou incitar ignorância negando conhecimentos e verdades que deveriam trazer avanços para o convívio social da humanidade; 

Um político corrompido pode afetar todo um estado ou nação retirando direitos do povo, indisponibilizando transportes que garantem locomoção digna e acessibilidade para as pessoas, desfazendo instituições essenciais como escolas, redes de hospitais, serviços de saneamento, segurança, energia etc. 

Um “grande” (multimilionário) empresário que é corrompido, afetará não só todos seus funcionários com reduções de salários, demissões e aumento da jornada de trabalho como também pode aumentar preços de seus produtos ou serviços afetando os consumidores e variados setores do mercado. Além de também poder causar impactos nocivos no meio ambiente causando poluição de biomas inteiros, desmatamento, mudanças climáticas, desmoronamentos de barragens, bairros etc...

E o poder nem sempre se refere a afetar um grande coletivo de seres, pois pode exercer em uma nível mais particular, por exemplo: Um médico que é corrompido (nega seu dever), prejudicará todos seus pacientes, assim como um arquiteto prejudicará a todos que frequentarem sua obra e um(a) pai ou mãe de família prejudicará todos seus filhos e parceira(o); isto é assim porque o objetivo original do poder é um dos mais sublimes: Servir a todos que estão subordinados a ele e servir também é ter responsabilidade. Deturpar este objetivo é um erro grave, como pode-se notar. 

Jesus vence as "3 tentações": a primeira tentação é uma "oferta de pães"/ uma infinitude de alimentos: Jesus supera a fome, ao afirmar que nem só do alimento "material" vive o ser humano, dando a entender que cuidar da alma é tão ou mais importante que o cuidado do que é perceptível pelos sentidos; De um ponto de vista mais místico ou asceta, também é possível entender que Jesus mostrava a possibilidade de alcançar um estado da consciência tão elevado que possibilitava que o corpo suportasse longos períodos sem alimento. Este estado está ligado ao compromisso de Jesus de propagar o amor solidário e corajoso demonstrando sua importância, este é o sentido existencial de Jesus, ou seja, cristão.

A segunda tentação "transporta Jesus para cima do pináculo do templo" e possivelmente se refere ao poder religioso, de manipular as massas. Jesus supera isto alegando que não se tenta (provoca) Deus - isto é impossível; 

A terceira tentação oferece poder sobre todas as nações na Terra, ou seja, provoca a Jesus a ter todo poder no "mundo material", ao que Jesus responde que só se serve a Deus. Isto porque Deus, o criador do universo, é bom e seguir seu exemplo é servir. 

Um Deus maligno não tem sentido algum, portanto é uma mentira. Sócrates e Platão, por exemplo, concordaram com a descrição feita pelo filósofo Anaxágoras, de que Nous, a mente cósmica, gerou e organizou todo o universo. Porém eles achavam insuficiente a ideia de um criador distante e indiferente - Nous então, teria criado tudo, com um objetivo de melhora, daí o conceito da idéia/ forma ("eidos") do bem/ belo ("kalos") de Platão. A ideia mais perfeita que deveria reger todas as coisas é o Bem.

De uma forma ou de outra, as tentações de modo geral ofereciam a Jesus, "benefícios" no mundo sensorial/ material/ terrestre, o que o hinduísmo de certo modo classifica como Maya, a ilusão. Sem contrariar o cristianismo e convergindo com o platonismo (a filosofia fundada/ registrada por Platão), o hinduísmo indica que a realidade sensorial, ou seja, que é percebida com nossos sentidos, é mais falsa, ou inferior à realidade de nossa psique/ alma/ à realidade espiritual. Certamente porque a ideia do Bem é oriunda desta realidade psíquica/ espiritual, afinal seres totalmente imersos na realidade material/ sensorial como plantas, fungos, animais (etc) são psiquicamente (mentalmente/ espiritualmente) menos complexos do que seres humanos, cumprindo basicamente funções de sobrevivência (alimentação, reprodução etc) na Terra. Tais formas de vida não têm a noção do Bem. Neste ponto poderia-se perguntar: mas e a noção do mal? O mal não faz sentido no monoteísmo e pode ser entendido como uma forma de negação do Bem como indicado a seguir:

Esta passagem pode parecer falar de um opositor direto de Jesus, como um vilão em posição oposta à Deus, ou quase isto. Porém vale lembrar que os nomes do “inimigo” de Jesus e/ ou de Deus, são praticamente adjetivos que nesta passagem significa o adversário ou o opositor. O termo "diabo", por exemplo, vem do grego "diabolos" que significa recusar ("bolos") através de ("dia"). Este prefixo "dia" deve ser o mesmo empregado na palavra "diálogo" que significa conhecimento/ palavra ("logos") através de ("dia"). Nota-se então que o prefixo "dia" se refere à interação com alguém, e o sufixo "bolos" determina que tipo de interação é esta - seu conteúdo ou finalidade é negar, recusar. A negação ou recusa que interagem com alguém ou impacta sobre alguém certamente tem o objetivo de dividir, enfraquecer, destruir (negar). 

Além disto, um vilão nesta posição não é mencionado em diversas espiritualidades (por exemplo, no hinduísmo, no platonismo, no espiritismo e na teologia da libertação). Isto porque tal tipo de personagem é característico de religiões dualistas, ou talvez, politeístas, não fazendo sentido no monoteísmo, que é o caso das religiões judaico/ cristãs! De qualquer forma alguns grupos cristãos interpretam esta e algumas outras passagens com uma visão dualista que contradiz o monoteísmo. Se tais grupos preferem falar do perigo de tal opositor agir na vida humana, ao invés de priorizar a propagação e a prática dos ensinamentos de Cristo, eles estão propagando mais medo do que bondade e já não estão agindo como verdadeiros cristãos. No cristianismo ou em qualquer outra religião monoteísta, Deus, sendo onipotente e onipresente, não deve ter um opositor a sua altura - tanto que Jesus diz "Ao Senhor teu Deus adorarás, e só a ele servirás". Deus é uno, não um mero personagem corpóreo, como por exemplo, um homem barbado escondido nas nuvens ou no espaço. Ele é o criador de todas as almas, de todo espírito, por isso nada vale encher-se de poder sobre o mundo sensorial, pois estamos nesta realidade para amar, para fazer o Bem. De modo resumido isto é fato e se delongar nesta explicação não deveria ser necessário, por mais que os defensores do “anti Deus” lancem supostos argumentos. Velhas questões do tipo “como é que Deus permite o mal na Terra” (etc) é prolongar ou até mesmo distorcer o assunto, pois é conjecturar perguntas e respostas sobre o além. Certamente ninguém tem a resposta sobre o além e mais vale dedicar-se ao bem através de pensamentos e de ações.

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