quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Sobre duas obras de Chico Xavier

Chico Xavier é um médium bastante admirado no meio espírita brasileiro em geral. Porém eu concordo com uma interpretação comum entre os espíritas progressistas: Que ele fez boas obras e más obras - Chico Xavier foi humano, ora acertando e ora errando. Particularmente comecei a entender suas obras deste modo após duas experiências que eu tive por volta do ano de 2020. Estas experiências consideradas como mediúnicas devem ter algum valor para os meios que as aceitam, como o espiritismo, a umbanda (etc)... Porém, além da experiência mediúnica eu busquei analisar o conteúdo das obras também.

Venerar este médium (Chico) como se ele fosse um santo que só trouxe belas verdades indiscutíveis é uma ingenuidade. O próprio Kardec, ao fundar o espiritismo, afirmava que era preciso uma análise crítica das mensagens recebidas através dos espíritos. Esta crítica de Kardec não era simples negação das mensagens e sim uma verificação para entender se o conteúdo de tais mensagens estavam de acordo com os precursores do espiritismo, como Jesus Cristo, Platão e Sócrates (embora estes 2 últimos raramente sejam mencionados pela maioria espírita no Brasil). 

Particularmente lembro-me de 2 textos psicografados por Chico. O 1º que eu esqueci o título, trazia severas críticas e acusações ao fundador da ordem dos jesuítas (Iñigo López de Oñaz y Loyola 1491-1556, traduzido como Inácio de Loyola) e veneração pelo fundador do protestantismo (Martin Luther 1483-1546, traduzido como Martinho Lutero). Uma interpretação exagerada da história por si só, pois não acho que algum destes 2 personagens tenha sido um santo perfeito - apenas foram humanos no centro de um momento decisivo (e talvez cheios de polêmicas) da história do ocidente: A reforma, ou divisão, da igreja católica que era poderosíssima até então (século 15). Porém, além deste fato, durante a leitura, uma nítida presença horrível (sentimentos ruins, entendo que seja de algum espírito) tentou a me induzir a continuar lendo. Diante o fato, interrompi a leitura e considerei uma obra ruim. Afirmo que esta presença foi nítida por se tratar de algo tão real ou mais real do que a realidade que me cerca. Sei que este tipo de relato, de descrever fenômenos "mais reais do que reais", existe em outras experiências pouco aceitas pela ciência tradicional, como por exemplo, em caso de uso de substâncias psicodélicas/ enteógenas. Não há outra forma de descrever o fenômeno que presenciei ao ler tal obra. 

Mesmo se eu ignorasse o fenômeno incomum, o próprio conteúdo do texto, indica que Chico Xavier cometeu um equívoco aqui: No histórico conflito entre protestantes e jesuítas não houve um lado angelical contra um lado demoníaco. Embora Lutero certamente teve mais relevância do que Loyola na história da alternância de poder no ocidente, ambos os lados deixaram entre seus seguidores, personagens bons e ruins. 

Martinho Lutero não foi o primeiro a enfrentar a igreja católica: Jan Hus (1375-1415) foi um personagem tão importante quanto Lutero em questionar os poderosos na Europa, enfrentando tanto a igreja católica como o imperador germânico. Além de Hus, alguns dos filósofos platônicos como Giovanni Pico (1463-1494), foram assassinados após questionar o poder da Igreja. Não estou afirmando que Lutero foi insignificante, longe disto. Mas pretender colocá-lo como um oposto à Loyola, alegando que o segundo agiu de acordo com "forças do mal", é um exagero, pois o processo histórico é gradual e cheio de desdobramentos. Lutero e os protestantes definitivamente diminuíram o poder absurdo predominante entre o alto clero católico na Europa abrindo caminhos para a religiosidade ocidental e possivelmente a criação da ordem dos jesuítas teve intenções de manipular e reganhar poder para a igreja católica. Porém qualquer um que estude a história da colonização da América, perceberá que alguns jesuítas defenderam a vida de comunidades ameríndias inteiras diante escravagistas como os encomederos espanhóis e os bandeirantes portugueses. Além disto há quem diga que Lutero teve alguma responsabilidade sobre a guerra dos camponeses e seu trágico desfecho que seguiu após a propagação de suas obras. Há indivíduos bons e ruins em ambos os lados e idolatrar ou demonizar qualquer um destes personagens é fomentar divisão e prolongar rixas que já deveriam ter acabado há séculos. 

O 2º texto do famoso autor espírita não me trouxe alegria e paz de espírito, mas me pareceu mais coerente e também me causou uma experiência mediúnica mais sutil: Uma sensibilidade seguida por uma emoção difícil de explicar - um tipo de tristeza, mas acompanhada de uma forte intuição de que há uma verdade na mensagem escrita pelo médium. Segue o texto: 

O enigma da obsessão 

"Comentávamos em círculo íntimo o inquietante enigma da obsessão na Terra, alinhando observações e apontamentos. Por que motivo se empenham criaturas encarnadas e desencarnadas em terríveis duelos no santuário mental? Que a vítima arrancada ao corpo, em delito recente, prossiga imantada ao criminoso, quando a treva da ignorância lhe situa o espírito a distância do perdão, é compreensível, mas como interpretar os processos de metodizada perseguição no tempo? Como entender o ódio de certas entidades, em torno de crianças e jovens, de enfermos e velhinhos? Por que a ofensiva persistente dos gênios perversos, através de reencarnações numerosas e incessantes? No mundo, os assalariados do mal comprometem-se ao redor de escuros objetivos... Há quem se renda às tentações do dinheiro, do poder político, das honras sociais e dos prazeres subalternos, mas em derredor de que razões lutam as almas desenfaixadas da carne se para elas semelhantes valores convencionais de posse não mais existem? 

Longa série de “porquês” empolgava-nos a imaginação, quando Menés, otimista ancião do nosso grupo, à maneira de carinhoso avô, falou bem humorado: – A propósito do assunto, contarei a vocês um apólogo que nos pode conferir alguma idéia acerca do nosso imenso atraso moral. E, tranqüila, narrou: – Em épocas recuadas, numa cidade que os séculos já consumiram, os bois sentiram que também eram criaturas feitas por nosso Pai Celestial, não obstante inferiores aos homens. Sentindo essa verdade, começaram a observar a crueldade com que eram tratados. O homem que, pela coroa de inteligência, devia protegê-los e educá-los, deles se valia para ingratos serviços de tração, sob golpes sucessivos de aguilhões e azorragues. Não se contentando com essa forma de exploração, escravizava-lhes as companheiras, furtando-lhes o leite dos próprios filhos, reservando-lhes à família e a eles próprios horrível destino no açougue, Se alguns deles hesitavam no trabalho comum, sofrendo com a tuberculose ou com a hepatite, eram, de pronto, encaminhados à morte e ninguém lhes respeitava o martírio final. Muitas pessoas compravam-lhes as vísceras cadavéricas ainda quentes, tostando-as ao fogo para churrascos alegres, enquanto outras lhes mergulhavam os pedaços sangrentos em panelas com água temperada, convertendo-os em saborosos quitutes para bocas famintas. Não conseguiam nem mesmo o direito à paz do túmulo, porque eram sepultados, aqui e ali, em estômagos malcheirosos e insaciáveis. Apesar de trabalharem exaustivamente para o homem, não conseguiam a mínima recompensa, de vez que, depois de abatidos, eram despojados dos próprios chifres e dos próprios ossos, para fortalecimento da indústria... Magoados e aflitos, começaram a reclamar; contudo, os homens, embora portadores de belas virtudes potenciais, receavam viver sem o cativeiro dos bois. Como enfrentarem, sozinhos, as duras tarefas do arado? Como sustentarem a casa sem o leite? Como garantirem a tranqüilidade do corpo sem a carne confortadora dos seres bovinos? O petitório era simpático, mas os bichos se mostravam tão nédios e tão tentadores que ninguém se arriscava à solução do problema. Depois de numerosas súplicas sem resposta, as vítimas da voracidade humana recorreram aos juízes; entretanto, os magistrados igualmente cultivavam a paixão do bife e do chouriço e não sabiam servir à Justiça, sem as utilidades do leite e do couro dos animais. Assim, o impasse permaneceu sem alteração e qualquer touro mais arrojado que se referisse ao assunto, a destacar-se da subserviência em que se mantinha o rebanho, era apedrejado, espancado e conduzido, irremediavelmente, ao matadouro... O venerável amigo fez longa pausa e acrescentou: – Essa é a luta multissecular entre encarnados e desencarnados que se devotam ao vampirismo. Sem qualquer habilitação para a vida normal, fora do vaso físico, temem a grandeza do Universo e recuam apavorados, ante a glória do Espaço Infinito, procurando a intimidade com os irmãos ainda envolvidos na carne, cujas energias lhes constituem precioso alimento à ilusão. E desse modo que as enfermidades do corpo e da alma se espalham nos mais diversos climas. Os homens, que se julgam distantes da harmonia orgânica sem o sacrifício dos animais, são defrontados por gênios invisíveis que se acreditam incapazes de viver sem o concurso deles. O enigma da obsessão, no fundo, é problema educativo. Quando o homem cumprir em si mesmo as leis superiores da bondade a que teoricamente se afeiçoa, deixará de ser um flagelo para a Natureza, convertendo-se num exemplo de sublimação para as entidades inferiores que o procuram... Então, a consciência particular inflamar-se-á na luz da consciência cósmica e os tristes espetáculos da obsessão recíproca desaparecerão da Terra... Até lá – concluiu, sorrindo –, reclamar contra a atuação dos Espíritos delinqüentes, conservando em si mesmo qualidades talvez piores que as deles, é arriscar-se, como os bois, à desilusão e ao espancamento. O ímã que atrai o ferro não atrai a luz. Quem devora os animais, incorporando-lhes as propriedades ao patrimônio orgânico, deve ser apetitosa presa dos seres que se animalizam. Os semelhantes procuram os semelhantes. Esta é a Lei. Afastou-se Menés, com a serenidade sorridente dos sábios, e a nossa assembléia, dantes excitada e falastrona, calou-se, de repente, a fim de pensar." 

O texto não afirma que a conversa tenha realmente ocorrido em nossa história no planeta Terra. Mas seu conteúdo praticamente converge um saber científico com um espiritual. Claro, tal convergência pode ser inaceitável tanto para cientistas que negam toda a realidade espiritual como para religiosos anti-científicos. Porém a indústria agropecuária é obviamente desalinhada com a natureza da Terra, pois ela é formada por pequenos grupos de seres humanos buscando acumular uma invenção humana chamada dinheiro, destruindo vários hectares de terra com seus respectivos biomas naturais para forçar a procriação de uma enorme quantidade de gado e poucas outras espécies de animais "domesticados". Estes animais forçados a procriar, são alimentados com produtos modificados geneticamente, com o objetivo exclusivo de se tornarem produtos para consumo humano. Tal consumo não é feito por causa da importância dos nutrientes da carne ou do leite de tais animais e sim porque os agropecuaristas querem enriquecer e os consumidores acham o produto saboroso, ambos ignorando o quanto isto devasta os biomas da Terra. Estes são os fatos científicos. 

 O saber religioso aqui escrito por Chico Xavier é o elemento espiritual do texto: Tudo é naturalmente gradual tanto nas leis espirituais como nas leis naturais, porque estas leis não estão totalmente separadas entre si; Na verdade elas se conectam pois são a mesma em níveis diferentes. Sócrates, Platão (no diálogo/ texto Górgias) e Kardec já afirmavam esta conexão entre lei natural e lei divina. Certamente os hindus têm algum entendimento disto também, já que consideram a "vaca como um animal sagrado". Sendo toda a lei gradual, a formação e a evolução dos espíritos também é. Forçar a reprodução de milhões de bovídeos tem seu impacto no fluxo espiritual: é uma consequência lógica. Os ateus e crentes de religiões que ignoram a vida animal podem viver sem entender isto, mas espíritas, umbandistas e hinduístas deveriam no ao menos considerar tal explicação espiritual.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Leitura ecumênica de "tesouro no céu, olho são" e "vãs preocupações"

Embora os textos dos 4 apóstolos aceitos nas religiões cristãs sejam suficientemente claros no que se refere à prática dos ensinamentos de J...