domingo, 18 de agosto de 2024

Diálogo filosófico sobre "A mulher doente/ A filha de Jairo" e "Diversas Curas"

A mulher doente/ A filha de Jairo - Legendas: (Mateus, Marcos, Lucas

"Dizendo-lhes Jesus estas coisas, eis que chegou um chefe da sinagoga, por nome Jairo, e o adorou prostrando-se, dizendo: Minha filha faleceu agora mesmo; mas vem, impõe-lhe a tua mão, e ela viverá. E Jesus, levantando-se, seguiu-o, ele e os seus discípulos. 

Eis que uma mulher que havia já doze anos padecia de um fluxo de sangue e gastara com os médicos todos os seus haveres, e por nenhum pudera ser curada, chegando por detrás dele, tocou a orla de sua roupa; Porque dizia consigo: Se eu tão-somente tocar a sua roupa, ficarei sã. E logo se lhe secou (estancou) a fonte do seu sangue; e sentiu no seu corpo estar já curada daquele mal. 

Logo Jesus, conhecendo que a virtude de si mesmo saíra, voltou-se para a multidão, e disse: Quem tocou nas minhas vestes? 

Responderam-lhe os seus discípulos: Vês que a multidão te aperta, e dizes: Quem me tocou? E ele olhava em redor, para ver a que isto fizera. 

Então a mulher, que sabia o que lhe tinha acontecido, temendo e tremendo, aproximou-se, e prostrou-se diante dele, e disse-lhe toda a verdade. 

 E Jesus, voltando-se, e vendo-a, disse: Tem ânimo, filha, a tua fé te salvou. E imediatamente a mulher ficou sã. 

Estando ele ainda falando, chegaram alguns do principal da sinagoga, a quem disseram: A tua filha está morta; para que enfadas (incomodas) mais o Mestre? 

Jesus, tendo ouvido estas palavras, disse ao principal (Jairo) da sinagoga: Não temas, crê somente. E Jesus, chegando à casa daquele chefe, não permitiu que alguém o seguisse, a não ser Pedro, Tiago, e João, irmão de Tiago e vendo os instrumentistas e o povo em alvoroço, entrando, disse-lhes: Por que vos alvoroçais e chorais? A menina não está morta, mas dorme. E riam-se dele. 

Disse-lhes: Retirai-vos, e, logo que o povo foi posto fora, entrou Jesus, e pegou-lhe na mão, e disse-lhe: Talita cumi; que, traduzido, é: Menina, a ti te digo, levanta-te. 

E logo a menina se levantou, e andava, pois já tinha doze anos; e assombraram-se com grande espanto. 

Jesus mandou-lhes expressamente que ninguém o soubesse; e disse que lhe dessem de comer. E espalhou-se aquela notícia por todo aquele país."

Esta passagem trata notoriamente da fé. Não apenas de crer em Jesus / em Deus, mas também de se crer no bem, e, consequentemente, nas boas pessoas. A fé não é apenas um estado mental de fervor, nem é mera crendice ou como torcer por qualquer esportista ou clube durante uma competição. A fé (ao menos de certa forma) é o sentido de vida da pessoa e sua capacidade de transcender para além de si. Este transcender para além de si é pensar no bem do próximo, desejar-lhe o bem direcionando-lhe bons sentimentos e sempre que possível, praticar este bem. Isto não é feito com um vazio afetivo ou existencial, afinal a pessoa tem um sentido de vida, pois crê no bem. Esta busca por alguém além de si, crendo no bem, relaciona-se com algo, ou mais precisamente, com alguém além de si. Sendo assim não é um mero efeito neuroquímico no nosso cérebro ou em qualquer outra parte de nosso corpo, como uma descarga de adrenalina etc. Este profundo efeito mental/ sentimental, é transcendente, portanto espiritual. Nota-se então que o estado mental daqueles que realmente crêem/ têm fé, contém a humildade - Os arrogantes ou orgulhosos jamais acreditam em Cristo ou no bem, eles duvidam e/ ou desprezam (d)o que não entendem. 

(Mais) Diversas Curas (Mateus) 

"Partindo Jesus dali, dois cegos o seguiram, gritando: Filho de Davi, tem piedade de nós! Jesus entrou numa casa, e os cegos aproximaram-se dele. Disse-lhes: Credes que eu posso fazer isso? Sim, senhor! responderam eles. Então ele tocou-lhes nos olhos se abriram. Recomendou-lhes Jesus em tom severo: Vede que ninguém o saiba. Mas apenas haviam saído, espalharam sua fama por toda região."

Jesus curando os doentes por Carl Bloch (1834-1890)

Mateus mostra que Jesus realizou muitas curas e que estes milagres também dependiam da fé de quem os recebiam, mas poucas pessoas seguiam sua recomendação para não espalharem suas histórias e serem discretos.

Estas duas passagens tratam de temas que tornaram-se polêmicos em certo nível na sociedade ocidental pós moderna. O tema dos milagres: Porque ele aparece tanto nas passagens sobre Jesus? Qual é a importância disto? Os milagres realmente ocorreram? Eles não ocorrem mais?

Os milagres de Jesus são resumidamente aceitos dentro das religiões cristãs, dominadas pela institucionalização e pelo dogmatismo. Porém, a busca por entendimento é muito rara nas religiões até este início de século 21, certamente devido à exigência de obediência propagada por líderes religiosos que pouco ou nada ensinam sobre a lei de amor solidário difundido por Jesus. 

A construção de conhecimento, por sua vez, é quase toda reservada às universidades e meios científicos, estes, tomados por um materialismo niilista que mais parece uma religião ateísta enrustida e fanática. A filosofia, mesmo com temas importantes como a ética, a epistemologia e ontologia, desde o século 20 foi relegada ao estado de acessório ou mero ornamento dos saberes, em uma posição de isolamento e intelectualismo. 

A menos que se coloque toda a causa dos milagres "no além" (anjos, Deus, espíritos etc), é praticamente impossível abordar o tema dos "milagres" e não "questionar/ investigar como a fé funciona". Enquanto houver dúvida, muitas perguntas relacionadas ao tema podem ser feitas: É um processo mental? Espiritual? Como interage com o corpo humano e com o meio a sua volta? Transcende o universo tridimensional?

Um dos poucos autores a tentar fazer a mediação das passagens cristãs com a construção de conhecimento, foi Allan Kardec (1804-1869) durante o século 19; Para o autor e seu círculo de colegas, muitos dos milagres fazem parte dos fenômenos naturais e por isso não precisam ser chamados assim (de milagres, ou de fenômenos sobrenaturais). 

Este tipo de fenômeno foi relatado ao longo da história humana pelo mundo todo em diferentes culturas e por variados povos: pessoas que curaram doentes somente com as próprias mãos, se comunicaram com seres do "além", flutuaram, saíram do próprio corpo visitando outra dimensão ou realidade, descobriram ou descreveram fatos aos quais não tinham acesso etc. Para os espíritas e alguns outros espiritualistas, os fenômenos relatados, como as curas entre outros, poderiam ser explicados como resultados de uma conexão do indivíduo na Terra com o divino ou com uma realidade espiritual por meio de um estado psíquico de fé / grande vontade e confiança e centrados na moral solidária e humilde (nos ensinamentos de Jesus, por exemplo). 

Mas como funcionaria isto? Como algo psíquico (seja mental ou espiritual) poderia gerar efeitos no nosso entorno perceptível (sensorial)? Questões sobre a relação "Mente-Corpo" são tratadas no mínimo desde René Descartes (1596-1650), um filósofo que incitou a investigação racional dos fenômenos, sem duvidar da existência da alma e sem negar a Deus. O debate sobre o que é a mente, sua existência e relação com o corpo, ou com partes específicas do corpo (cérebro), se acirrou na Europa após as publicações deste filósofo e nunca foi concluído de maneira definitiva. O que aconteceu no meio acadêmico gradualmente após o século 17, foi uma dominância da pré suposição de que a mente é só o cérebro / sistema nervoso central e seus efeitos eletroquímicos - Uma visão da realidade meramente materialista/ niilista, que nega conceitos de mente, alma, espírito e possíveis realidades além da tridimensional.

No período final deste processo, ao longo do século 19, surgem o positivismo, a criação do termo cientista e o darwinismo social (biologização de todas "ciências" humanas). Inclusive a ciência separada da filosofia parecia ser afastada da ética, pois as ideias de raça expostas por "intelectuais" da Europa no século 17, se intensificaram de tal maneira durante o século 19, que mesmo diante o surgimento do movimento pela abolição da escravização, a maior parte dos europeus e seus descendentes passaram a difundir o racismo até mesmo nos estudos "científicos". A ética ficou relegada à filosofia e a ciência passou a ser pregada como o "conhecimento verdadeiro" (o cientificismo surgiu de tudo isso).

Apesar da dominância desta interpretação da realidade na ciência no século 19, de acordo com o fundador do espiritismo, haveria um agente intermediário entre espírito e corpo, o qual ele denominou de perispírito. Devido às limitações da época, Kardec o considerou um tipo de fluído super sutil e este pode ter sido um ponto fraco de seus argumentos, pois pouquíssimos indivíduos perceberiam tal “fluído” ou o perispírito. No Livro dos Médiuns e Evocadores, ele discute a possibilidade de tais forças estarem relacionadas à eletricidade e ao magnetismo - ponto ressaltado também em um dos números de sua Revista Espírita. Mas isto era insuficiente para a ciência do século 19 pois pouco se sabia sobre campos eletromagnéticos. Um dos únicos autores a teorizar algo semelhante relacionado à “vida animal” foi Franz Mesmer (1734-1815) com suas explicações sobre “magnetismo animal”. 

A ciência descobriu os campos eletromagnéticos de determinados orgãos do corpo humano (cérebro e coração, por exemplo) apenas nos anos de 1960, mas pouco ou nada explica sobre sua causa ou finalidade. Pesquisas sobre o assunto são tímidas e lentas por uma série de motivos, então certamente ainda estamos muito longe de descobrir se Kardec e suas explicações espíritas do século 19 estavam apontando para um caminho correto. 

De qualquer maneira, antes de tais avanços científicos, é muito mais importante a humanidade evoluir eticamente e isso é um processo mais lento do que os avanços da ciência: basta vermos, ao longo da história, o desprezo pelo bem universal na construção de conhecimento (o desprezo pela ética difundida por Platão no século 4 antes de Cristo) e a falta de empatia, piedade e solidariedade nas religiões cristãs (a distorção e/ ou o desprezo pelos ensinamentos de amor difundidos por Jesus e seus apóstolos no século 1). 

Os "milagres", "capacidades mediúnicas", "transes místicos" ou "magias" existiram e existem em relatos muito variados e são inúmeros - muitos deles estão além do alcance do método empírico de investigação porque este se baseia na experiência sensorial e na reprodutibilidade, ou seja, o indivíduo que investiga o fenômeno deve ter controle sobre este: Ele deve reproduzi-lo mecanicamente. Desta forma os fenômenos mediúnicos/ milagrosos podem ser discutidos somente na construção de conhecimento por via de investigações mais filosóficas (observação, diálogo, comparações, reflexões). Alguns podem ser expressos e entendidos por meio das artes, o que envolve muito mais o sentimento e as emoções do que a racionalidade: músicas ou poesias, por exemplo, historicamente fizeram parte da espiritualidade em sociedades como os celtas (bardos), nórdicos (skalds) e gregos (rapsodos). Então classificar todos os relatos sobre tais experiências como meras mentiras ou alucinações é tão absurdo quanto querer explicar todos eles de maneira absoluta sem progredir mais, não só intelectualmente, mas principalmente eticamente e empaticamente.

"Vertentes" do hinduísmo, como a Kriya Yoga, mostram a importância da ética/ do caráter da pessoa na vida espiritual. A meditação faz parte de um progresso espiritual, onde o yogue começa a perceber e lidar melhor com seus próprios sentimentos e pensamentos e este progresso pouco ou nada difere do que é defendido por Allan Kardec, por Platão e por tantos outros líderes ou pensadores que trataram da espiritualidade. 

Platão, o fundador da filosofia ocidental, inclusive coloca a ética no centro da construção de conhecimento, sem determinismos, sem permissividade e sem reducionismos e segregacionismos: Sua filosofia tem rigor no método de investigação dos fenômenos: Pautando-se pela ideia (eidos) do bem (kalos), Platão partia da presunção da ignorância (não muito diferente da fenomenologia de Husserl) e investigava os assuntos através da maiêutica - diálogo, exposição de idéias, análise e reflexão; Além disto a filosofia ocidental em sua proposta original tinha abertura (universalidade) através do diálogo com diferentes formas de consciência: a racional, a mítica (dos mitos) e a mística (dos transes, experiências transcendentais etc). Este modo de consciência integral incitado originalmente por Platão é abordado por poucos filósofos na modernidade, como por exemplo, por Jean Gebser (1905-1973).

Tudo isto foi exposto para indicar que a ideia do bem está relacionada com o amor ensinado por Jesus. Não se trata de determinar o que existe ou não existe - se trata de expor que o bem é importante porque é um valor universal e é praticável por qualquer ser humano, portanto deveria estar por trás das grandes decisões e ações humanas. Todo ser humano tem uma noção do que é certo, do que é bom para todos, seja uma noção eventualmente menos nítida ou mais nítida.

 

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