Seguem 2 textos cristãos: O 1º é aceito nas religiões católicas e protestantes/ evangélicas, tendo autoria atribuída a Mateus, Marcos e Lucas. Posteriormente constatou-se que o mesmo texto com algumas diferenças também aparecem no evangelho atribuído a Tomé.
O 2º corpo de textos faz parte das descobertas feitas no ano de 1945, em Nag Hammadi, e são atribuídos aos apóstolos Tomé e Filipe com ressalvas: Não há consenso sobre a autoria ou a data em que foram escritos. O que se sabe é que fazem parte do cristianismo primitivo. Os textos de Tomé podem ter sido escritos entre os anos de 40 e 140, enquanto os de Filipe, entre os anos de 180 e 350; Geralmente os estudiosos consideram este último como feito durante o século 3.
As legendas são baseadas nas cores: Textos exclusivamente atribuídos a 1 único autor estão em colorido (Lucas em vermelho, Tomé em ciano e Filipe em magenta); o restante em preto refere-se às partes do escritas por vários autores (iguais entre Mateus, Marcos, Lucas, Tomé ou qualquer combinação destes).
Confissão de Pedro/ Primeiro Anúncio da Paixão (Tomé, Mateus, Marcos, Lucas)
Chegando ao território de Cesaréia de Felipe, Aconteceu que, estando ele (Jesus) só, orando, foram ter com ele os discípulos;
Então Jesus perguntou-lhes, dizendo: Quem diz a multidão que eu sou?
E, respondendo eles, disseram: João o Batista; outros, Elias, e outros que um dos antigos profetas ressuscitou.
Então Jesus disse aos seus discípulos: E vós, quem dizeis que eu sou? "Compare-me com alguém e diga-me com quem eu pareço."
Mateus disse a Ele: "Você é como um sábio filósofo".
Respondendo Pedro, disse: Um anjo justo. O Cristo de Deus.
E Jesus, respondendo, disse-lhe: Bem-aventurado és tu, Simão Barjonas (filho de Jonas), porque tu não revelou a carne e o sangue, mas o meu Pai, que está nos céus. Pois também eu te digo que tu és Pedro (pedra, Kefa), e sobre esta pedra edificarei a minha igreja (*), e as portas do inferno não prevalecerão contra ela; E eu te darei as chaves do reino dos céus; e tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus.
E, admoestando-os, mandou que a ninguém referissem isso, (que ele era Jesus, o Cristo) Dizendo: É necessário que o Filho do homem sofra muitas coisas, e seja rejeitado dos anciãos e dos escribas, e seja morto, e ressuscite ao terceiro dia.
E Pedro, tomando-o de parte, começou a repreendê-lo, dizendo: Senhor, tem compaixão de ti; de modo nenhum te acontecerá isso.
Ele, porém, voltando-se, disse a Pedro: Para trás de mim, Satanás, que me serves de escândalo; porque não compreendes as coisas que são de Deus, mas só as que são dos homens.
Tomé disse a Ele: "Mestre, minha boca é totalmente incapaz de dizer com quem você se parece."
Jesus disse: "Eu não sou seu mestre. Porque você bebeu, você ficou intoxicado pela fonte borbulhante que eu tenho medido." E Ele o tomou e retirou-se e disse-lhe três coisas.
Quando Tomé voltou para seus companheiros, eles lhe perguntaram: "O que Jesus diz a você?"
Tomé disse-lhes: "Se eu lhes disser uma das coisas que ele me disse, vocês vão pegar pedras e jogá-las em mim; um fogo sairá das pedras e vos queimarão".
Certamente os judeus na época de Jesus estavam apegados às suas próprias leis e interpretações de sua religião abraâmica. Não somente isto: também faz sentido que muitos ainda estivessem apegados às figuras dos profetas, sejam eles os citados neste texto do evangelho ou outros patriarcas do judaísmo. Este era um dos possíveis motivos da dificuldade em aceitar Jesus como profeta e filho de Deus. Jesus então reforça sua identidade como filho de Deus e sua missão na Terra.
Quando Shi’mon Bar Yonah (Simão, filho de Jonas) diz que Jesus é o "Cristo" (palavra grega que significa bom ou ungido) de Deus, ou, de acordo com o evangelho de Tomé, diz que Jesus é o anjo justo, este o responde que não revelou a carne e o sangue (possivelmente o corpo), mas sim Deus. Jesus, então o nomeou de Kefas (Pedro), que significa pedra.
(*) É preciso ver a palavra dita no idioma que Jesus e/ ou os apóstolos falavam. Entende-se que a palavra igreja venha do grego "ekklesia", que significava assembleia. Com o passar do tempo certamente igreja foi sendo mais entendida como sinônimo de templo. É possível que Jesus tenha dito que edificaria seu templo em Pedro, pois nós seres humanos, de certa forma, somos templos sagrados concedidos por Deus às nossas almas/ aos nossos espíritos. Afinal Jesus, continuando, diz que dará a chave dos céus à Pedro. Religiosos interpretam que Jesus ordenou a fundação da igreja nesta passagem, porém vale lembrar chamar Simão Bar Yonas de "pedra" pode significar chamá-lo de forte como a pedra, ou resistente como a pedra, para não ceder às fraquezas como o egoísmo e a ignorância. Assim, Jesus poderia estar ensinando este a não ceder à fúria (como no caso em que Pedro ataca um adversário com a espada) nem ceder ao medo, à covardia (quando nega Jesus três vezes seguidas). Jesus faz isso uma outra vez, quando diz que orou a Deus para que Pedro "envergasse mas não quebrasse" diante as dificuldades.
Também é notável que Jesus não proibiu seus seguidores de pregarem em templos, porém transmitiu a maior parte de seus ensinamentos em suas caminhadas, seja em ruas de cidades ou em campos e ermos, enquanto ajudava os mais pobres, os doentes e os desamparados.
Por fim, quando Pedro contraria Jesus, dizendo que nenhum mal lhe acontecerá, ele certamente mal sabia o que estava dizendo. Jesus então, voltando-se a Pedro, ordena que satanás se afaste porque certamente as palavras ditas pelo apóstolo foram feitas na ignorância. A advertência que Pedro fez, ignorou o fato que Jesus não se importava com as "coisas dos homens" (lutar por sua própria vida ou encher-se de auto-piedade), e sim em pregar a lei de amor de Deus, enfrentando seus opositores, sejam eles os sacerdotes, ou os romanos como Pilatos, os soldados etc. Jesus, que já era odiado por muitos fariseus, saduceus e escribas, sabia que seus ensinamentos não seriam aceitos instantaneamente, e sim, que demorariam muitos anos para serem difundidos através das civilizações.
A versão atribuída ao apóstolo Tomé fala sobre uma "fonte que deve intoxicar o coração dos humanos": poderia ser o materialismo, o ceticismo (típico de Tomé), os desejos, intenções e ambições ou os sentimentos negativos. Para lidar com um cético como Tomé, durante o século 1, certamente foi utilizada uma linguagem mística, embora talvez possa haver algum exagero no último parágrafo do evangelho "de Tomé"; O que Jesus disse em segredo a Tomé então deveria parecer algo difícil de entender, ou talvez bizarro para a maioria das pessoas daquela época e local onde os apóstolos viviam. Vale lembrar que mesmo religiosos judeus como Nicodemos, tinham dificuldade em entender Jesus: https://novotemplodauniao.blogspot.com/2024/04/leitura-ecumencia-de-jesus-conversa-com.html
Diferentemente de Platão (428 aC - 347 aC) que fomentava entre as elites gregas as virtudes, ou seja, as ideias dos valores universais (a justiça, a temperança, a coragem e o bem/ belo) através do diálogo e dos estudos da matemática, da geometria, da astronomia/ astrologia e da música, Jesus lidava com uma maioria empobrecida na Judéia tomada pelos romanos, por volta do ano 30 d.C. Sem acesso aos estudos e à filosofia, a maioria do povo da região onde Jesus vivia, precisavam aprender sobre o amor, o bem, a solidariedade, a piedade, a humildade (etc) através de ensinamentos simples, através de parábolas, ou, em último caso, através da linguagem mística que trata da relação do ser humano com a realidade espiritual e/ ou divina.
Imagens (Tomé, Filipe)
A verdade não veio ao mundo nua, mas veio em tipos e imagens. O mundo não receberá a verdade de nenhuma outra maneira. Há um renascimento e uma imagem de renascimento. Certamente é necessário nascer de novo através da imagem. Qual deles? Ressurreição. A imagem deve erguer-se novamente através da imagem. A câmara nupcial e a imagem devem entrar pela imagem na verdade: esta é a restauração. Não apenas aqueles que produzem o nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo devem fazê-lo, mas os produziram para você. Se alguém não os adquirir, o nome ("cristão") também será tirado dele. “Mas a pessoa recebe a unção do [...] … poder da cruz. Esse poder os apóstolos chamavam de "direita e esquerda". Pois essa pessoa não é mais um cristão, mas um Cristo.”
Jesus disse: As imagens são manifestas ao homem, mas a luz nelas permanece oculta na imagem da luz do Pai. Ela se tornará manifesta, mas sua imagem permanecerá oculta por sua luz. Quando você vê a sua semelhança, você se alegra. Quando você vê suas imagens que surgiram antes de você, e que nem morrem nem se tornam manifestas, quanto tereis de suportar!
Filipe e Tomé comparam o mundo (ou universo) material com imagens: A verdade é algo superior ao universo e só pode vir como tipos e imagens para cá. Assim, "o mundo" seria composto de meras imagens da verdade, a realidade espiritual, divina, de Deus.
Nossa mente com seus pensamentos e sentimentos, ou seja, nossa alma, é oculta “em nosso corpo”. O corpo dos seres humanos é uma dessas imagens que percebemos em vida, enquanto nossa alma é feita da luz de Deus. Assim, nascer de novo através da imagem, significa renascer (reencarnar, mas como essa palavra não era conhecida na Judéia e/ ou entre judeus, eles certamente usavam a palavra ressuscitar tanto para ressurreição como para reencarnação) no corpo.
Quando chegar a hora nossa alma será manifesta e a imagem (relacionada ao corpo, ou à reencarnação) deverá ficar oculta, como uma mera memória esquecida. Certamente Tomé quis dizer que quando vemos nossas imagens anteriores, sofremos por ver defeitos e pecados do passado ou de outras vidas.
Filipe, neste seu texto, diz que a "ressurreição" é erguer a imagem pela imagem, então certamente não fala da alma manifestando-se em sua luz: fala de um renascimento, ou seja, de reencarnar.
Pautando esses temas dos evangelhos de Tomé e de Filipe, considero importante notar também o seguinte: O que vi em estudos sobre o "evangelho de Filipe" parece indicar que estudiosos proeminentes (como Van den Broek) dão uma ênfase nas questões da sacralidade do casamento ou da "relação homem-mulher" desses textos do cristianismo "primitivo". Embora o tema da "relação homem-mulher" seja nítido em alguns trechos, em outros não é. O evangelho de Filipe está fragmentado, com partes faltantes, então vieses são inevitáveis. Aqui procuro observar mais as questões relativas à realidade espiritual e ao espírito, que aparecem nos textos tanto de Filipe, como de Tomé.
Os textos de Tomé e Filipe, apesar da linguagem frequentemente estranha ou complexa, tratava das questões espirituais com teor místico típicos da região e época (Judéia, Império Romano, durante o século 1 ou 2). Tais argumentos dialogam com o médio platonismo; o movimento dos séculos 1 e 2 d.C., baseado na filosofia fundada por Platão no século 3 a.C. O (médio) platonismo tentava restaurar a filosofia de Platão, distorcida por autores anteriores como os céticos, mas tinha abertura a um ecletismo, dialogando com outras ideias da época. Sua aceitação no Império Romano variou: alguns imperadores aceitaram esta e outras filosofias, como foi o caso de Marco Aurélio, porém, vários outros imperadores perseguiram os filósofos, principalmente por esses fazerem críticas ao governo imperial.
O platonismo, seguindo a lógica de Platão, ensinava que a psiquê (alma) é imortal e transmigrava (de modo similar à reencarnação). A realidade cognoscível, das idéias (eidos, que também significava forma), é superior à realidade sensível (sensorial), pois é a realidade dos valores universais e imutáveis, como as virtudes da justiça, da temperança, da moderação e do bem/ belo (kalos). Estas eidos eram "unas", o que significa uma ideia de união e de universalidade, por isso deveriam ser aplicadas ao coletivo, como mostrado o diálogo "A República".
E, além disso, tais "ideias" relacionavam-se com a essência das coisas, o Ser (ontos), possivelmente fazendo a ponte com as insinuações de um Theos (Deus) supremo feitas pelo filósofo em vários trechos de suas obras. Apesar destas insinuações, não é claro se esse Theos com inicial maiúscula é o demiurgo apresentado pelo autor, o nous, a inteligência divina ou ambos, sendo todos sinônimos entre si. Mesmo com a possibilidade do Deus de Platão ser uno além de bom (justo etc), muitos estudiosos de Platão, consideram que o "Theos" do filósofo era Zeus ou Apolo...
Todos esses aspectos do platonismo indicam que teólogos, filósofos e outros espiritualistas ou estudiosos dos séculos 1 e 2 poderiam muito bem discutir e traçar as semelhanças entre a filosofia de Platão e a de Jesus de Nazaré.
Arianos, "nestorianos", gnósticos/ valentinianos, cristãos platônicos entre outros movimentos dos 3 ou 4 primeiros séculos, certamente não eram seitas que se separaram de uma visão única ou dogmática do cristianismo primitivo; Eram interpretações comuns da época; uma época de um Império que alternava entre um politeísmo (romano) e um culto aos imperadores, dominando várias outras culturas: celtas, germânicas, judias, cartaginesas, alanas, dácias etc. Nas catacumbas dos cristãos primitivos por exemplo, podem ser encontrados alguns elementos que indicam um sincretismo (mistura) com a religião greco-romana politeísta: Próxima às imagens de Jesus, Maria e outros personagens cristãos, há a representação de um personagem com chapéu frígio possivelmente indicando Orfeu; outro enfrentando uma serpente onde não é claro se é Adão ou Hércules, entre outras possíveis artes.
Apesar de todos esses elementos indicando uma inter religiosidade ou sincretismos religiosos durante os 2 primeiros séculos d.C., os "concílios" da igreja que começaram a ser feitos por influência de imperadores romanos a partir do século 3, suprimiram muitas dessas visões ao longo da história. Inclusive teólogos e lexicógrafos como o alemão, Walter Bauer, indicam isto em seus estudos.
Enfim, os textos citados aqui parecem falar da transitoriedade da vida: Jesus escolheu propagar sobre a lei de amor até o fim de sua vida, ignorando o que os homens valorizam no mundo; Filipe fala como o mundo é composto de imagens da verdade. Tomé fala como o ser humano vive entre imagens que escondem a luz que relaciona-se com Deus (e sua luz).
É possível concluir que a realidade onde vivemos (a Terra, o universo tridimensional etc) é composto por esse tipo de "imagem" que esconde a verdade relacionada a Deus e sua luz - uma realidade divina, como Platão cita em Fedro: o "hiper ouranos" onde as virtudes irradiam luz, diferentemente das "imagens" da vida terrestre. Assim, aquele que ama os valores universais que unem e são bons para todos/ para a coletividade, como a justiça, a temperança, a coragem e "kalos", o bem/ a verdadeira beleza, não quer se separar destes. A pessoa que ama sem priorizar benefícios para si mesma, tem este amor sem interesses particulares. Esse amor é o que Platão e possivelmente seu mestre Sócrates chamaram de "O Alado".
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