segunda-feira, 3 de junho de 2024

Leitura intereligiosa de "Escolha dos Apóstolos"

A seguir está o breve texto onde Mateus, Marcos e Lucas indicam Jesus escolhendo seus apóstolos (certamente entre um número maior deles). Há algumas pequenas diferenças entre os textos e conteúdos dos autores...

"Jesus subiu ao monte, passou a noite inteira orando a Deus e, ao amanhecer, chamou os que ele quis. E, chamando (designando) os seus doze discípulos, deu-lhes poder sobre os espíritos imundos, para os expulsarem, e para curarem toda a enfermidade e todo o mal. 

Ora, os nomes dos doze apóstolos são estes: O primeiro, Shim'on (Simão), chamado Kefas (Pedro), e Andreas (André), seu irmão; os irmãos Ya’akov (Tiago),e Yohannan (João), filhos de Zabdi (Zebedeu), aos quais pôs o nome de Boanerges (filhos do trovão); Philippos (Filipe) e Bar Talmay (Natanael Bartolomeu); Ta’oma (Tomé) e Matityahu (Mateus), o publicano; Ya’akov (Tiago), filho de Alfeu, e Yehudah (Judas) Lebeu, apelidado Tadeu; Shim'on (Simão), o Zelote (o Cananita), e Yehudah (Judas) Iscariotes, aquele que o traiu."

O número de apóstolos escolhidos por Jesus é 12, o mesmo número das tribos de Judá. Independentemente de possíveis discussões acerca deste número, as 12 tribos citadas no velho testamento eram o início de uma nova (ou renovada) civilização judaica-israelita oriunda das antigas tribos hebraicas monoteístas. Moisés trouxera os 10 mandamentos de Deus e Josué liderou seu povo em um período entre os anos de 1512 a.C. e 1391 a.C. ou entre 1311 a.C e 1191 a.C. Nestas épocas certamente todos os povos e civilizações haviam feito pouco progresso intelectual e empático, as guerras eram muito comuns e Josué deu ênfase à coragem e à firmeza na fé e no seguimento dos ensinamentos judaicos daquele período antigo. 

Os 12 apóstolos de Jesus, por sua vez, teriam a função não só de difundir o cristianismo, como de formar uma comunidade nova (alternativa de certo modo) também monoteísta, como mostrada nos Atos dos Apóstolos. A renovação trazida por Jesus durante o século 1 é a ênfase na piedade/ no amor a todos seres humanos e a Deus, sem se apegar às coisas do mundo. 

Jesus não é autoritário, mas foi o mestre dos apóstolos no sentido de ensiná-los sobre a lei divina de amor. Os apóstolos passaram a buscar viver como Jesus os ensinara: uma vida ativa de humildade, auto percepção, paciência, devoção ao bem, força de vontade, piedade e amor responsável, revolucionário e esperançoso. Este estilo de vida devocional é um sentido de vida alicerçado em valores universais: Valores internos da pessoa e também externos, por serem úteis à humanidade, precisando serem aplicados coletivamente para difundir ética, equidade e esperança. 

 Os “poderes concedidos” por Cristo aos apóstolos, através de sua presença e ensinamentos, certamente são o que o espiritismo classifica como capacidades mediúnicas, ou simplesmente, mediunidade. Elas são mencionadas nos Atos dos Apóstolos, como graças recebidas, o que possivelmente originou o termo “agraciado por Deus” ou “agraciado pelo Espírito Santo”. Um médium, é um intermediário entre a Terra (o mundo material, ou o universo tridimensional) e o “além”, seja chamado de reino dos céus, mundo espiritual ou plano astral. A mediunidade é aceita entre diferentes grupos de pessoas, mas com algumas diferenças de interpretações entre si. Alguns destes grupos são: espíritas, teósofos, umbandistas, candomblecistas, algumas ordens místicas e espiritualistas generalistas. 

Também é possível que estes poderes chamados de graças nas igrejas cristãs, de mediunidade no espiritismo e na umbanda e de kripa no hinduísmo (kri = fazer; pa = receber) tenham sido desenvolvidos pelos apóstolos de modo similar ao que a Kriya Yoga explica através de Yogananda, em sua obra "Autobiografia de um Yogue": O maya, o mundo físico, ou o véu dualístico governado pela relatividade, é o que Deus, a Única Vida e Unidade Absoluta, usa para aparecer como manifestações diversas. Transcender maya foi tarefa dada à raça humana pelos profetas milenares. Elevar-se acima da dualidade da criação e perceber a unidade do Criador é o objetivo supremo do ser humano. Os que se apegam à ilusão cósmica de maya se submetem à sua lei essencial de polaridade: fluxo e refluxo, ascensão e queda, prazer e dor. Este padrão cíclico assume uma monotonia angustiante depois que a alma humana passa por milhares de renascimentos, ela então, começa a lançar um olhar de esperança para além das compulsões de maya. 

A vida devocional, seja de um apóstolo, ou de um mestre yogi, então é harmonia entre o interior (purificação) e o exterior (ação). Não é meramente interior porque isso seria ignorar a criação de Deus e a necessidade da solidariedade, da piedade e da lealdade. Também não é só exterior porque isto seria se prender à realidade física/ sensorial: A ilusão/ maya, ignorando a autopercepção, a temperança e a força de vontade. A consciência deve se expandir rumo à onipresença - ser monoteísta é ir de encontro a Deus. Por isso existe o lema hindu “Eu sou Ele” que significa “estou junto a Deus”, ou de certo modo: "meu ego não importa - sirvo a Deus pois Ele nos ensina que sua lei é de amor". 

O ato de Jesus "dar aos apóstolos poder sobre os espíritos imundos", não indica apenas uma graça ou uma mediunidade a qual os discípulos só entrariam em contato com espíritos maus, isto seria contraditório. Se os discípulos/ apóstolos de Jesus, "tinham poder sobre espíritos imundos", certamente poderiam entrar em contato com "espíritos bons ou puros" (anjos etc). O fato é que Jesus foi ensinando seus discípulos e esperou que estes fizessem o bem: Confiou a eles que curassem os necessitados, que convertessem as pessoas que estivessem cometendo erros, mas que tivessem alguma abertura à escuta ou ao diálogo e também confiou que expulsassem eventuais "espíritos imundos". Os "espíritos imundos" agissem sobre os próprios discípulos ou sobre outras pessoas, deveriam ser vencidos. Fossem eles a causa de degradação moral, de adoecimento psíquico ou "perispiritual". Para realizar este último feito ("vencer tais espíritos") os discípulos tiveram liberdade e Judas Iscariotes deixou-se levar por desejos da vida material, como por exemplo o dinheiro, ao invés de viver os ensinamentos de Jesus. Judas Iscariotes é um exemplo daquele que desiste do bem e do amor para buscar interesses mesquinhos/ particulares. Esses poderes dados por Jesus aos apóstolos não são uma mera técnica: Os discípulos fiéis a Jesus conseguiam realizar alguns feitos ("milagres") similares ao de seu "mestre", porque priorizavam seus ensinamentos, se esforçando em viver o estilo de vida humilde, devocional e amoroso ensinado por Cristo para permanecerem unidos a Deus e seus anjos, como indica o texto atribuído a Filipe: 

Ele (Jesus) disse naquele dia na ação de graças: "Vocês que uniram a luz perfeita com o Espírito Santo, unam também os anjos conosco, como sendo as imagens". Não despreze o cordeiro, pois sem ele não é possível ver o rei. Ninguém poderá entrar no rei se ele estiver nu.

O termo "nu" aqui parece se referir àquele que abandonou o bem e o amor, tornando-se impuro/ imundo/ predominantemente mesquinho, como foi o caso de Judas Iscariotes. Seria uma nudez de intenções verdadeiramente boas e de benevolência, ou seja, uma ausência de bondade que impede a pessoa de encontrar a Deus, ocasionalmente chamado de rei, dependendo da época e do grupo cristão.

Talvez unir a luz com o Espírito Santo e com os anjos tenha relação com o que o espiritismo fundado por Allan Kardec chame de perispírito. Embora classificado como um "fluído" super sutil entre os espíritas da França do século 19, certamente este agente intermediário entre espírito e corpo estava relacionado ao que Franz Mesmer chamava de magnetismo animal. Nos estudos de Kardec é possível encontrar explicações fazendo relações de "poderes" como os citados nesta passagem, com a psiquê das pessoas (força de vontade, sentido de vida, intenção, estado moral etc), com a eletricidade e o magnetismo (ou seja, com o eletromagnetismo). No hinduísmo existem teorias sobre os chakras do ser humano que tocam a questão de "poderes" similares a desta passagem da bíblia. Este é um tema polêmico, onde ainda há pouquíssima concórdia entre espiritualistas, religiosos, filósofos e cientistas e entre teístas e ateístas...



Um comentário:

  1. Falar de "poderes" iguais ou similares aos citados nesta passagem é um tabu desde a propagação do empirismo como único meio de se obter a verdade e desde a aceitação da ideia de espaço-tempo absoluto de Newton. A negação de tais relatos certamente foi aumentando com o positivismo no início do século 19, passando pelo cientificismo e pelo biologismo da 2ª metade daquele mesmo século, pelo niilismo e pelo materialismo do século 20, até este início do século 21. Isto ocorre porque o assunto toca em questões sobre a existência da alma/ espírito e quais são os limites das capacidades humanas. Mesmer viveu durante a ascensão do empirismo e do mecanicismo enfrentando grande resistência durante o século 18. Diante a ciência positivista apoiada na pré suposição materialista do séc 19, Kardec não tinha meios de provar empiricamente os fenômenos experimentados por ele. Devido a estes fatores, ambos autores foram eventualmente taxados de "pseudo-cientistas". A explicação de Kardec tentou ser filosófica em certo nível, mas a filosofia também teve os temas metafísicos extirpados de si após o movimento niilista e outros similares. Ainda hoje o pressuposto materialista é dominante na ciência que continua presa a física newtoniana e aos dogmas de áreas das ciências biológicas, não muito diferentemente das religiões que guardam muitos dogmas de séculos atrás. A postura adequada tanto de cientistas como de religiosos, deveria ser de não dar certezas sobre o assunto do outro, porém esta questão (de poderes & afins) continua polêmica por flutuar entre os dois campos. É possível que a ciência avance se deixar o materialismo e o biologismo para trás, passando a priorizar os estudos de campos eletromagnéticos dos átomos ou dos órgãos do corpo humano. Mesmo com tal avanço, haverão questões filosóficas (éticas, ontológicas...) envolvidas no assunto dos milagres, das graças e da mediunidade, assim como haverão questões da espiritualidade e da religiosidade que persistirão por tempo indeterminado...

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