segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Leitura Ecumência sobre o início da missão de Jesus

As passagens a seguir não estão rigorosamente na sequência apresentada na bíblia, mesmo porque não parece haver consenso sobre uma possível ordem cronológica de todos os fatos da história de Jesus. Esta é só uma vaga tentativa de reinterpretar uma ordem cronológica dos fatos, mas priorizando a espiritualidade, ou seja, os ensinamentos de Cristo. Aqui utilizo passagens dos evangelhos atribuídos a Filipe e a Tomé para complementar os textos de João Evangelista.

Legendas: João em Amarelo, Mateus em Azul, Lucas em vermelho, outros em preto;

Início da pregação/ Encontro com Os primeiros apóstolos (João 1: 35-39) 

No dia seguinte João (Batista) estava outra vez ali, e dois dos seus discípulos; 

E, vendo passar a Jesus, disse: Eis aqui o Cordeiro de Deus. 

E os dois discípulos ouviram-no dizer isto, e seguiram a Jesus. 

E Jesus, voltando-se e vendo que eles o seguiam, disse-lhes: Que buscais? E eles disseram: Rabi (que, traduzido, quer dizer Mestre), onde moras? 

Ele lhes disse: Vinde, e vede. Foram, e viram onde morava, e ficaram com ele aquele dia; e era já quase a hora décima."

Há algumas diferenças entre a versão de João e a dos demais apóstolos, no que se refere aos intervalos de tempo entre o encontro de Jesus com os apóstolos e a prisão de João Batista. 

Só é mencionado que André era um dos 2 apóstolos de João Batista que passou a seguir Jesus. Como Simão (Pedro) não estava junto de André neste primeiro momento, o outro apóstolo então poderia ser Tomé, Tiago, filho de Halfay (Alfeu), Simão, o zelote (cananita), Judas Tadeu ou Judas Iscariotes. Isto porque fica claro que Jesus encontraria João (Evangelista), Tiago (filhos de Zebedeu) e Mateus somente depois de André e Simão (Pedro) começarem a seguir Jesus. Mas estes detalhes pouco importam diante a mensagem de Jesus:

O valor da alma e do corpo (Tomé, Filipe) 

"Jesus disse: "Se a carne veio a existir por causa do espírito, é uma maravilha. Mas se o espírito veio a existir por causa do corpo, é uma maravilha das maravilhas. Na verdade, estou espantado com a forma como esta grande riqueza fez sua casa nesta pobreza." 

Ninguém vai esconder um grande objeto valioso em algo grande, mas muitas vezes alguém jogou incontáveis ​​milhares em algo que vale um centavo. Compare a alma. É uma coisa preciosa e veio a estar em um corpo desprezível."

Embora não sejam aceitos nas igrejas (católica, protestante...), os evangelhos de Tomé e Felipe podem trazer algo útil, colaborando com os ensinamentos de Cristo. O importante é não contradizer a lei (divina) de amor propagada por Jesus, pois a maioria dos dogmas das igrejas são interpretações posteriores aos evangelhos e as pessoas podem ou não seguí-los.

A palavra espírito no texto de Tomé aparece em letras minúsculas, indicando que ele deveria se referir à alma, pois se fosse precedido pelo pronome “o” e escrito com as iniciais maiúsculas deveria significar Espírito Santo. 

Assim, estas citações de Felipe e Tomé mostram como a alma é mais valiosa do que o corpo, também em acordo com Santa Tereza D’Ávila que afirma que a alma foi feita à semelhança de Deus. Platão, o espiritismo e o hinduísmo não diferem de Tomé, Felipe ou Tereza neste ponto: O corpo é importante, mas a alma é mais. Qualquer religião, fé ou espiritualidade deveria entender isto, sem temer parecer fantasiosa ou absurda, mesmo porque é impossível provar a inexistência da alma: Quem defende tal ideia, o faz por opinião, pois quem crê que só a matéria existe ou que nada existe após a morte se apoia em mera interpretação/ visão de mundo. Saber algum, seja científico ou filosófico tem como finalidade provar a inexistência de algo. Assim, analisemos brevemente a importância da alma e sua relação com o corpo:

O espiritismo, bem como a filosofia ocidental fundada por Platão, reforçam bastante este entendimento, pois de acordo com estas filosofias a alma é indivisível e imortal. Por esta razão podemos evoluir intelectualmente, sentimentalmente e moralmente (eticamente) através de um número qualquer de existências/ reencarnações. A carne, ou seja, o corpo material / terrestre morre dentro de um período de tempo, mas o espírito prossegue em sua jornada em busca do bem maior, do Todo, de Deus. 

Quando Filipe compara o corpo com algo que vale um centavo e o chama de desprezível, não se trata de desprezar a vida e sim, de não querer mais do que o necessário para si mesmo durante a vida corpórea em sua existência sensorial. O corpo é temporário e não levamos bem material algum com nossa alma que pode e deve transcender para além da vida terrestre. 

A mente do ser humano é alguma coisa, e embora não possa ser percebida por nossos 5 sentidos, é algo coeso: não se trata de meros pensamentos desconexos ou sentimentos aleatórios, pois tem uma consciência e uma identidade com valores individuais, opiniões, modos de expressar-se, memórias, intuições e capacidades. Tudo isto forma nossa essência, nossa psiquê (mente ou alma) que certamente é mais complexa do que as demais formas de vida da Terra. Esta complexidade deve fazer parte da riqueza cuja Tomé indica que Jesus mencionou. Embora a diferença entre mente e alma não seja clara no cristianismo e no platonismo, essa mente voltada a toda a diversidade na Terra possivelmente é uma parcela de nossa essência (a alma, que de acordo com o hinduísmo e suas variadas práticas, é mais completa, superior à mente). Nossa essência, ou alma, tem um potencial literalmente transcendente, tanto no sentido de se importar com outras pessoas/ almas, como no sentido de existir além da inatividade do corpo (sono, experiências de quase morte etc) e da morte deste. 

A Bodas de Caná (João 2: 1-11) 

"E, ao terceiro dia, fizeram-se umas bodas em Caná da Galiléia; e estava ali a mãe de Jesus. E foi também convidado Jesus e os seus discípulos para as bodas. 

E, faltando vinho, a mãe de Jesus lhe disse: Não têm vinho. 

Respondeu-lhe Jesus: Mulher, isto compete a nós? (ou: que tenho eu contigo?) Ainda não é chegada a minha hora. 

Então sua mãe disse aos serventes: Fazei tudo quanto ele vos disser. 

E estavam ali postas seis talhas de pedra, para as purificações dos judeus, e em cada uma cabiam dois ou três almudes (medida com cerca de 40 litros cada). 

Disse-lhes Jesus: Enchei de água essas talhas. E encheram-nas até em cima. 

Então disse-lhes: Tirai agora, e levai ao mestre-sala. E levaram. 

Logo que o mestre-sala provou a água feita vinho (não sabendo de onde viera, se bem que o sabiam os serventes que tinham tirado a água), chamou o mestre-sala ao esposo, e disse-lhe: Todo o homem põe primeiro o vinho bom e, quando já têm bebido bem, então o inferior; mas tu guardaste até agora o bom vinho. 

Jesus principiou assim os seus sinais em Caná da Galiléia, e manifestou a sua glória; e os seus discípulos creram nele. 

Depois disto desceu a Cafarnaum, ele, e sua mãe, e seus irmãos, e seus discípulos; e ficaram ali não muitos dias."

É possível levantar algumas questões sobre esta passagem, sendo a primeira delas, referente à cronologia: Se este foi o primeiro milagre feito por Jesus, então teria sido realizado antes do encontro com Pedro, quando é realizado o milagre da pesca. Descartando a interpretação feita por alguns religiosos de que os evangelhos de Lucas e de João foram escritos pela mesma pessoa, possivelmente o apóstolo João (Evangelista) teve maior preocupação em narrar os fatos em ordem cronológica se comparado a Lucas. O apóstolo Lucas certamente se empenhou mais em reunir os textos resgatando passagens perdidas ou omitidas anos depois dos primeiros apóstolos de Jesus. 

Outra questão referente à história das Bodas de Caná é: Jesus inicialmente não tinha a intenção de transformar a água em vinho, mas mudou de ideia? De fato, a falta de vinho nesta história talvez não fosse relevante e por isto ele teria dito à sua mãe que "ainda não era sua hora". Porém, reconsiderando após Maria falar para os outros "fazerem tudo que ele disser", Jesus realizou o milagre para mostrar o poder da fé, iniciando sua missão. Talvez haja um significado místico neste texto do apóstolo João, mas não tratarei disto. 

Enfim, os milagres, são classificados como feitos da mediunidade pelo espiritismo: Todo ser humano é um médium em algum nível, mesmo que não saiba disto, pois ser médium nada mais é do que ser intermediário entre o universo sensorial (corpóreo ou tridimensional) e o "mundo" espiritual - a realidade dos espíritos em "erraticidade", "desencarnados" ou incorpóreos. De modo similar ao espiritismo, a Kriya Yoga, explica que todos os acontecimentos do universo ocorrem segundo leis e são explicáveis através de leis. Assim, nada realmente poderia ser chamado de milagre, a menos que tudo fosse considerado um milagre. Enfim, tentativas de detalhar ou de investigar mais racionalmente os "milagres", os poderes dos grandes mestres/ profetas, ou a mediunidade, são de menor importância se comparados com os objetivos dos textos dos apóstolos: Transmitir os ensinamentos de Jesus Cristo, que por sua vez mostram a importância do perdão, da humildade e da solidariedade, ou seja, a importância do bem. 

A cegueira do coração e o arrependimento (Mateus, Marcos, Lucas, Tomé) 

Jesus disse: "Tomei o meu lugar no meio do mundo, e Apareci para eles em carne e osso. Encontrei todos embriagados (intoxicados); Não encontrei nenhum deles com sede. E minha alma se afligiu pelos filhos dos homens, porque são cegos de coração e não tem visão; pois vazios eles vieram ao mundo, e vazios também eles procuram deixar o mundo. Mas por enquanto estão embriagados. Quando eles sacudirem o vinho, então eles arrependerão-se." 

"E, deixando Nazaré, Jesus, ouvindo que João (Batista) estava preso, foi habitar em Cafarnaum, cidade marítima, nos confins de Zebulom e Naftali; Para que se cumprisse o que foi dito pelo profeta Isaías, que diz: A terra de Zebulom, e a terra de Naftali, Junto ao caminho do mar, além do Jordão, A Galiléia das nações; Na (região da) Galiléia cheio da força (virtude) do espírito, pregava o evangelho do reino de Deus dizendo: Arrependei-vos e crede no evangelho porque o tempo está cumprido, e o reino de Deus (dos céus) está próximo. O povo, que estava assentado em trevas, Viu uma grande luz; aos que estavam assentados na região e sombra da morte, A luz raiou.

  Com os termos embriagados/ intoxicados, cegos de coração e vazios, Jesus certamente se refere à falta de amor no mundo em variados aspectos: Falta de humildade, falta de receptividade, falta de amizade, falta de devoção ao próximo e a Deus, falta de esperança etc. "Sacudir o vinho" possivelmente se refere a inquietar-se interiormente, na alma, abandonando o egoísmo para passar a buscar um sentido, uma espiritualidade, um amor, ou o divino. O vinho como uma bebida colocada dentro de um recipiente, seja um odre (um tipo de cantil) ou uma talha (um vaso ou "barril" de pedra), representaria o interior do ser humano, seus sentimentos, sua alma.

O trecho de Mateus, onde ele menciona que a luz raiou para aqueles sentados na escuridão, pode se referir aos pecadores arrependidos após ouvir os ensinamentos de Cristo, ou talvez se refira aos espíritos salvos por Jesus. Este arrependimento não é mera vergonha nem medo de uma força superior ou de Deus - trata-se de buscar sentir, ser sensível, pois todos temos a noção do bem e do mal, do que é certo e do que é errado. Quanto menos utilizamos esta noção, mais difícil colocá-la em prática, mas se refletirmos sobre nossos pensamentos, sentimentos e ações, esta noção pode ir se desenvolvendo ou ressurgindo. Assim podemos sentir o mal que fizemos às outras pessoas, colocando-nos no lugar delas e sentindo seus sofrimentos para desenvolver empatia e entendimento da importância da equidade. Isto é olhar os próprios defeitos e erros para corrigi-los abandonando vícios e atitudes nocivas às outras pessoas e a si mesmo. De todo modo, o arrependimento é um ato interior, ninguém precisa expressá-lo com palavras ou gestos - é um ato puramente mental, psíquico, subjetivo e não se trata de uma opinião superficial: O arrependimento é um “sentimento” que só a própria pessoa sabe se sentiu e ela não pode esconder isto de si mesma. Arrepender-se de maus atos, seja um vício, uma ação nociva à outrem ou pensamentos de desprezo ou ódio sobre outras pessoas, é a 1ª etapa para abandonar a postura de prejudicar a si mesmo ou aos demais indivíduos/ ou grupos de pessoas. Faz parte de buscar um novo sentido de vida e também é um passo para o progresso da própria alma.

 

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Leitura Ecumênica da Tentação no Deserto

Os apóstolos Marcos, Mateus e Lucas mencionam que Jesus se retirou por dias no deserto e ali resistiu às tentações, como mostrado a seguir.

Tentação no Deserto (Mateus 4: 1-11, Marcos 1: 12-13, Lucas 4: 1-13) 

"Então foi conduzido Jesus pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo diabo. 

E, tendo jejuado quarenta dias e quarenta noites, depois teve fome; 

Chegando-se a ele o tentador, disse: Se tu és o Filho de Deus, manda que estas pedras se tornem em pães. 

Jesus, porém, respondendo, disse: Está escrito: Nem só de pão viverá o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus. 

Então o diabo o transportou à cidade santa, e colocou-o sobre o pináculo do templo, e disse-lhe: Se tu és o Filho de Deus, lança-te de aqui abaixo; porque está escrito: Que aos seus anjos dará ordens a teu respeito, E tomar-te-ão nas mãos, Para que nunca tropeces com o teu pé em alguma pedra. 

Disse-lhe Jesus: Também está escrito: Não tentarás o Senhor teu Deus. 

Novamente o transportou o diabo a um monte muito alto; e mostrou-lhe todos os reinos do mundo, e a glória deles. E disse-lhe: Tudo isto te darei se, prostrado, me adorares. 

Então disse-lhe Jesus: Vai-te, Satanás, porque está escrito: Ao Senhor teu Deus adorarás, e só a ele servirás. 

Então o diabo o deixou; e, eis que chegaram os anjos, e o serviam."

Esta é uma passagem notoriamente mística, ou em outra linguagem, é uma cena bastante espiritual. Santa Tereza d’Ávila, uma mística cristã que viveu na Espanha durante o século 16, afirmou que quanto mais pura, ou mais empenhada no bem / na lei divina de amor, a pessoa for, mais o(s) opositor(es) a cobiçarão. Trata-se do tema do bem e do mal além da vida terrestre - em uma dimensão espiritual. 

Kardec diz que os espíritos impuros desistem de tentar enganar ou seduzir uma alma muito boa, mas voltarão a espreitá-la na busca de uma oportunidade. Ele jamais confirmou a existência de um "opositor a Deus diametralmente poderoso", pois isso seria dualismo, não monoteísmo.

A passagem de Jesus no Deserto não difere muito destas explicações. Considerando a pureza e a missão de Jesus Cristo, entende-se tais cenas e tais explicações: A prática do bem sempre tem suas dificuldades e é muito importante ter comprometimento para não não ser seduzido. Abandonar o bem para dedicar-se à mesquinharia e ao egoísmo, obviamente é um erro, ou seja, um pecado. Na Terra mesmo é possível notar que os erros que mais causam estragos amplos e profundos nos seres humanos ou até mesmo nas demais formas de vida do planeta, surgem a partir de indivíduos em posição de poder: 

Um líder religioso corrompido pode afetar não só todos os fiéis de sua religião, mas também pode incitar intolerância e ódio que causam conflitos com outras religiões ou incitar ignorância negando conhecimentos e verdades que deveriam trazer avanços para o convívio social da humanidade; 

Um político corrompido pode afetar todo um estado ou nação retirando direitos do povo, indisponibilizando transportes que garantem locomoção digna e acessibilidade para as pessoas, desfazendo instituições essenciais como escolas, redes de hospitais, serviços de saneamento, segurança, energia etc. 

Um “grande” (multimilionário) empresário que é corrompido, afetará não só todos seus funcionários com reduções de salários, demissões e aumento da jornada de trabalho como também pode aumentar preços de seus produtos ou serviços afetando os consumidores e variados setores do mercado. Além de também poder causar impactos nocivos no meio ambiente causando poluição de biomas inteiros, desmatamento, mudanças climáticas, desmoronamentos de barragens, bairros etc...

E o poder nem sempre se refere a afetar um grande coletivo de seres, pois pode exercer em uma nível mais particular, por exemplo: Um médico que é corrompido (nega seu dever), prejudicará todos seus pacientes, assim como um arquiteto prejudicará a todos que frequentarem sua obra e um(a) pai ou mãe de família prejudicará todos seus filhos e parceira(o); isto é assim porque o objetivo original do poder é um dos mais sublimes: Servir a todos que estão subordinados a ele e servir também é ter responsabilidade. Deturpar este objetivo é um erro grave, como pode-se notar. 

Jesus vence as "3 tentações": a primeira tentação é uma "oferta de pães"/ uma infinitude de alimentos: Jesus supera a fome, ao afirmar que nem só do alimento "material" vive o ser humano, dando a entender que cuidar da alma é tão ou mais importante que o cuidado do que é perceptível pelos sentidos; De um ponto de vista mais místico ou asceta, também é possível entender que Jesus mostrava a possibilidade de alcançar um estado da consciência tão elevado que possibilitava que o corpo suportasse longos períodos sem alimento. Este estado está ligado ao compromisso de Jesus de propagar o amor solidário e corajoso demonstrando sua importância, este é o sentido existencial de Jesus, ou seja, cristão.

A segunda tentação "transporta Jesus para cima do pináculo do templo" e possivelmente se refere ao poder religioso, de manipular as massas. Jesus supera isto alegando que não se tenta (provoca) Deus - isto é impossível; 

A terceira tentação oferece poder sobre todas as nações na Terra, ou seja, provoca a Jesus a ter todo poder no "mundo material", ao que Jesus responde que só se serve a Deus. Isto porque Deus, o criador do universo, é bom e seguir seu exemplo é servir. 

Um Deus maligno não tem sentido algum, portanto é uma mentira. Sócrates e Platão, por exemplo, concordaram com a descrição feita pelo filósofo Anaxágoras, de que Nous, a mente cósmica, gerou e organizou todo o universo. Porém eles achavam insuficiente a ideia de um criador distante e indiferente - Nous então, teria criado tudo, com um objetivo de melhora, daí o conceito da idéia/ forma ("eidos") do bem/ belo ("kalos") de Platão. A ideia mais perfeita que deveria reger todas as coisas é o Bem.

De uma forma ou de outra, as tentações de modo geral ofereciam a Jesus, "benefícios" no mundo sensorial/ material/ terrestre, o que o hinduísmo de certo modo classifica como Maya, a ilusão. Sem contrariar o cristianismo e convergindo com o platonismo (a filosofia fundada/ registrada por Platão), o hinduísmo indica que a realidade sensorial, ou seja, que é percebida com nossos sentidos, é mais falsa, ou inferior à realidade de nossa psique/ alma/ à realidade espiritual. Certamente porque a ideia do Bem é oriunda desta realidade psíquica/ espiritual, afinal seres totalmente imersos na realidade material/ sensorial como plantas, fungos, animais (etc) são psiquicamente (mentalmente/ espiritualmente) menos complexos do que seres humanos, cumprindo basicamente funções de sobrevivência (alimentação, reprodução etc) na Terra. Tais formas de vida não têm a noção do Bem. Neste ponto poderia-se perguntar: mas e a noção do mal? O mal não faz sentido no monoteísmo e pode ser entendido como uma forma de negação do Bem como indicado a seguir:

Esta passagem pode parecer falar de um opositor direto de Jesus, como um vilão em posição oposta à Deus, ou quase isto. Porém vale lembrar que os nomes do “inimigo” de Jesus e/ ou de Deus, são praticamente adjetivos que nesta passagem significa o adversário ou o opositor. O termo "diabo", por exemplo, vem do grego "diabolos" que significa recusar ("bolos") através de ("dia"). Este prefixo "dia" deve ser o mesmo empregado na palavra "diálogo" que significa conhecimento/ palavra ("logos") através de ("dia"). Nota-se então que o prefixo "dia" se refere à interação com alguém, e o sufixo "bolos" determina que tipo de interação é esta - seu conteúdo ou finalidade é negar, recusar. A negação ou recusa que interagem com alguém ou impacta sobre alguém certamente tem o objetivo de dividir, enfraquecer, destruir (negar). 

Além disto, um vilão nesta posição não é mencionado em diversas espiritualidades (por exemplo, no hinduísmo, no platonismo, no espiritismo e na teologia da libertação). Isto porque tal tipo de personagem é característico de religiões dualistas, ou talvez, politeístas, não fazendo sentido no monoteísmo, que é o caso das religiões judaico/ cristãs! De qualquer forma alguns grupos cristãos interpretam esta e algumas outras passagens com uma visão dualista que contradiz o monoteísmo. Se tais grupos preferem falar do perigo de tal opositor agir na vida humana, ao invés de priorizar a propagação e a prática dos ensinamentos de Cristo, eles estão propagando mais medo do que bondade e já não estão agindo como verdadeiros cristãos. No cristianismo ou em qualquer outra religião monoteísta, Deus, sendo onipotente e onipresente, não deve ter um opositor a sua altura - tanto que Jesus diz "Ao Senhor teu Deus adorarás, e só a ele servirás". Deus é uno, não um mero personagem corpóreo, como por exemplo, um homem barbado escondido nas nuvens ou no espaço. Ele é o criador de todas as almas, de todo espírito, por isso nada vale encher-se de poder sobre o mundo sensorial, pois estamos nesta realidade para amar, para fazer o Bem. De modo resumido isto é fato e se delongar nesta explicação não deveria ser necessário, por mais que os defensores do “anti Deus” lancem supostos argumentos. Velhas questões do tipo “como é que Deus permite o mal na Terra” (etc) é prolongar ou até mesmo distorcer o assunto, pois é conjecturar perguntas e respostas sobre o além. Certamente ninguém tem a resposta sobre o além e mais vale dedicar-se ao bem através de pensamentos e de ações.

domingo, 11 de fevereiro de 2024

Leitura Ecumênica do Batismo de Jesus

 

Batismo de Jesus (Mateus, Marcos, Lucas, João) 

"Então (no dia seguinte) veio Jesus da Galiléia ter com João Batista, junto do Jordão, para ser batizado por ele. E João disse: Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo. 

Este é aquele do qual eu disse: Após mim vem um homem que é antes de mim, porque foi primeiro do que eu. E eu não o conhecia; mas, para que ele fosse manifestado a Israel, vim eu, por isso, batizando com água. 

Mas (apesar de Jesus esperar receber seu batismo), João opunha-se-lhe, dizendo: Eu careço de ser batizado por ti, e vens tu a mim? 

Jesus, porém, respondendo, disse-lhe: Deixa por agora, porque assim nos convém cumprir toda a justiça. Então ele (João, o batista) o permitiu. 

Sendo Jesus batizado, saiu logo da água, e eis que se lhe abriram os céus, e viu o Espírito de Deus em forma de pomba descendo e vindo sobre ele. 

Eis que uma voz dos céus dizia: Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo (ponho minha afeição). 

E João testificou, dizendo: Eu vi o Espírito descer do céu como (na forma de) pomba, e repousar sobre ele. Eu não o conhecia, mas o que me mandou a batizar com água, esse me disse: Sobre aquele que vires descer o Espírito, e sobre ele repousar, esse é o que batiza com o Espírito Santo. E eu vi, e tenho testificado que este é o Filho de Deus."

A aparência do Espírito de Deus é de menor importância nesta passagem do batismo de Jesus. Embora descrito como semelhante a uma pomba, a visão do Espírito, de acordo com as religiões hindus, pode estar relacionada a um chakra, ou qualquer elemento intermediário entre o mundo corpóreo e o espiritual - um assunto ainda pouquíssimo conhecido até este início de século 21. 

A ação realizada por João Batista é um mistério que deve indicar que Jesus, sendo o Messias de Deus, para propagar a lei divina de amor, precisou receber o batismo de outra pessoa fiel a Deus. Isto deve ser uma amostra da humildade de Jesus e da necessidade das relações na lei divina, que engloba as leis naturais, portanto as leis universais também. Afinal, quem ama de verdade, ama alguma coisa, pois o amor trata-se de um sentimento profundo, portanto interno do ser, mas transcendental, pois direciona-se para além de si mesmo. 

Em diferentes práticas da religião hindu, há uma ênfase no relacionamento guru (mestre ou professor) e discípulo. Embora seja comum que o discípulo hindu seja um aprendiz com longo caminho pela frente, há casos em que este alcança um nível equivalente ao do guru rapidamente. Isto ocorre porque os espíritos (encarnados ou desencarnados) têm “incontáveis existências” e um discípulo pode ser um espírito muitíssimo elevado que só precisa de “um despertar” com a ajuda de seu guru. 

Numa simples tentativa de manter o diálogo ecumênico, é possível que este último caso seja similar ao de Jesus de Nazaré: Apesar de sua tremenda sabedoria se manifestar desde muito cedo, ele “despertou” para sua missão após receber o batismo de João que fôra enviado por Deus para “abrir o caminho de Cristo”. Neste caso o “discípulo” Jesus não deve ter meramente se igualado ao mestre: ao receber o batismo, deve ter superado João Batista. 

Talvez a história de que Sócrates teve um sonho ou visão de que um cisne pousava aos seus pés pouco antes de conhecer Platão, tenha um elo com o relacionamento mestre/ discípulo ou  com o relacionamento anunciador e trabalhador/ guia da humanidade. Afinal Sócrates ficou conhecido por seus diálogos, mas quem registrou todo seu conhecimento foi seu pupilo Platão.

domingo, 4 de fevereiro de 2024

Leitura Ecumênica da Pregação/ Testemunho de João Batista

A seguir estão reunidos os textos dos 4 apóstolos sobre as ações de João Batista antes de encontrar Jesus.

Legendas: Marcos = verde, Mateus = azul, Lucas = vermelho, João = amarelo. 

Pregação / Testemunho de João Batista (Mateus, Marcos, Lucas, João) 

"Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus; 

Como está escrito nos profetas: Eis que eu envio o meu anjo ante a tua face, o qual preparará o teu caminho diante de ti

Voz do que clama no deserto: “Preparai o caminho do Senhor, Endireitai as suas veredas. (Malaquias 3, 1; Isaías 40, 3) Todo o vale se encherá, E se abaixará todo o monte e outeiro; E o que é tortuoso se endireitará, E os caminhos escabrosos se aplanarão; E toda a carne verá a salvação de Deus.” 

E no ano quinze do império de Tibério César, sendo Pôncio Pilatos presidente (praefectus) da Judéia, e Herodes tetrarca da Galiléia, e seu irmão Filipe tetrarca da Ituréia e da província de Traconites, e Lisânias tetrarca de Abilene, Sendo Anás e Caifás sumos sacerdotes, veio no deserto a palavra de Deus a João, filho de Zacarias. Apareceu João batizando no deserto, e pregando o batismo de arrependimento, para remissão dos pecados. 

Eis que toda a província da Judéia e os de Jerusalém iam ter com ele; e todos eram batizados por ele no rio Jordão, confessando os seus pecados. 

João, o Batista, andava vestido de pêlos de camelo, e com um cinto de couro em redor de seus lombos, e comia gafanhotos e mel silvestre. E pregava no deserto da Judéia, dizendo: Arrependei-vos, porque é chegado o reino dos céus. 

Vendo a multidão (de fariseus e saduceus) que saía para ser batizada por ele, dizia, pois, João: Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da ira que está para vir? Produzi, pois, frutos dignos de arrependimento, e não comeceis a dizer em vós mesmos: Temos Abraão por pai; porque eu vos digo que até das pedras pode Deus suscitar filhos a Abraão. E também já está posto o machado à raiz das árvores; pois toda a árvore que não dá bom fruto, corta-se e lança-se no fogo. 

E a multidão o interrogava, dizendo: Que faremos, pois? 

Respondendo ele, disse-lhes: Quem tiver duas túnicas, reparta com o que não tem, e quem tiver alimentos, faça da mesma maneira. 

E chegaram também uns publicanos, para serem batizados, e disseram-lhe: Mestre, que devemos fazer? E ele lhes disse: Não peçais mais do que o que vos está ordenado. 

Também uns soldados o interrogaram, dizendo: E nós que faremos? E ele lhes disse: A ninguém trateis mal nem defraudeis, e contentai-vos com o vosso soldo. 

E, estando o povo em expectativa, e pensando todos de João, em seus corações, se porventura seria o Cristo, E este é o testemunho de João, quando os judeus mandaram de Jerusalém sacerdotes e levitas para que lhe perguntassem: Quem és tu? 

E confessou, e não negou; confessou: Eu não sou o Cristo. 

E perguntaram-lhe: Então quê? És tu Elias? E disse: Não sou. És tu profeta? E respondeu: Não. Disseram-lhe pois: Quem és? para que demos resposta àqueles que nos enviaram; que dizes de ti mesmo? 

João Batista respondeu: Eu sou a voz do que clama no deserto: Endireitai o caminho do Senhor, como disse o profeta Isaías. 

E os que tinham sido enviados eram dos fariseus perguntaram-lhe: Por que batizas, pois, se tu não és o Cristo, nem Elias, nem o profeta? 

João respondeu-lhes, dizendo: Eu batizo com água; mas no meio de vós está um a quem vós não conheceis. Ele, porém, vos batizará com o Espírito Santo e com fogo. Ele tem a pá na sua mão e limpará a sua eira, e ajuntará o trigo no seu celeiro, mas queimará a palha com fogo inextinguível

Este é aquele que vem após mim, que é antes de mim, que é mais forte do que eu, do qual eu não sou digno de, abaixando-me, desatar a correia das suas sandálias (ou calçados). 

Estas coisas aconteceram em Betabara, do outro lado do Jordão, onde João estava batizando. E assim, admoestando-os, muitas outras coisas também anunciava ao povo."

 Marcos é o apóstolo com o evangelho mais sucinto, mas que ressalta as emoções e o lado humano de Jesus. Neste seu primeiro texto, ele afirma que João Batista é o anjo enviado por Deus, antes de Jesus Cristo. O espiritismo, seguindo um argumento não muito diferente, entende João Batista como uma reencarnação do profeta Elias - Ou seja, um espírito muito bom e próximo de Jesus. 

Independente de qualquer explicação religiosa ou filosófica, João Batista vivia humildemente no deserto, pregando o arrependimento dos pecadores. Nitidamente, estes pecadores, em sua maioria, eram pessoas que não estavam nas piores posições da sociedade, pois como Lucas mostrou em seu texto, eles eram líderes religiosos, soldados, centuriões e cobradores de impostos. 

João cita o exemplo de pecados de cada uma destas classes e recomenda que eles se arrependam e passem a praticar a caridade - que parem de pensar em benefícios próprios e comecem a olhar para os mais necessitados, ajudando-os. 

Com a frase "não comeceis a dizer em vós mesmos: Temos Abraão por pai" também é mostrado que esconder-se atrás de desculpas de ser de determinada linhagem sanguínea/ família, de determinada nação ou de determinada religião não faz pessoa alguma cristã nem faz uma pessoa verdadeiramente religiosa. É preciso viver os ensinamentos de Cristo, pois a lei de Deus é de amor na mente e nas ações.

Assim, os ensinamentos de João Batista se baseavam nas lições sobre justiça e solidariedade de profetas anteriores como Isaías. Justiça que não se trata de punitivismo e sim de equidade: João Batista, bem como Isaías, e talvez de maneira mais pacífica e mais pura do que este profeta, falava de ter piedade dos pobres e miseráveis, de se arrepender das atitudes egoístas e de libertar os escravizados pelos poderosos. Todos estes ensinamentos fazem parte da lei divina, a qual Jesus em seguida vem desenvolver, ressaltando a importância do amor. Amor não é tipo algum de desejo, pois nunca é mesquinho nem interesseiro. Amor é ser receptivo, portanto também é ser humilde. Amor é ser sereno e conviver para gostar e tratar de acordo com isto: É criar amizade sem interesses particulares e sem sucumbir aos desejos materiais que menosprezam as relações amigáveis. A partir daí, o amor é buscar conhecer e honrar o próximo, devotando-se ao bem: É ser solidário com as pessoas, principalmente com os mais necessitados, mantendo a esperança para si e para os outros.

Sobre o Machado à raiz da árvore (Filipe): "A maioria das coisas no mundo, enquanto suas partes internas estão escondidas, permanecem de pé e vivem. Se forem reveladas, elas morrem, como é ilustrado pelo homem visível: enquanto os intestinos do homem estiverem ocultos, o homem está vivo; quando seus intestinos forem expostos e saírem dele, o homem morrerá. Assim também com a árvore: enquanto sua raiz está escondida, ela brota e cresce. Se sua raiz for exposta, a árvore seca. Assim é com cada nascimento que há no mundo, não apenas com o revelado, mas com o oculto. Enquanto a raiz da maldade estiver escondida, ela será forte. Mas quando é reconhecida, é dissolvida. Quando é revelada, perece. É por isso que a Palavra diz: "O machado já está posto à raiz das árvores" (Mateus 3,10). Não apenas cortará - o que é cortado brota novamente - mas o machado penetra profundamente, até trazer a raiz. Jesus arrancou a raiz de todo o lugar, enquanto outros o fizeram apenas parcialmente. Quanto a nós mesmos, que cada um de nós cave a raiz do mal que está dentro de si, e que cada um a arranque do coração pela raiz. Será arrancado se o reconhecermos. Mas se a ignoramos, ela se enraíza em nós e produz seu fruto em nosso coração. Ela nos domina. Nós somos seus escravos. Leva-nos cativos, para nos obrigar a fazer o que não queremos; e o que queremos, não fazemos. É poderosa porque não o reconhecemos. Enquanto existe, está ativa."

Quantos preconceitos e desejos egoístas nós escondemos dos outros e de nós mesmos? Progredir abandonando tais mentalidades é um processo que exige atenção, esforço, vontade e prática. Assim como deve-se combater os próprios pensamentos maliciosos e sentimentos destrutivos, é possível combater o mal externo, expondo-o, ao invés de tentar atacá-lo com ações violentas: Na obra de Platão Eutidemo (sobre a Disputa), Sócrates usa a figura da besta lendária, a hidra de Lerna, comparando-a com a de seus adversários sofistas, que quando tinha uma cabeça derrotada, duas novas nasciam no lugar, com novos “argumentos” falaciosos/ mentirosos. Metaforicamente a hidra pode representar o mal que ataca de várias formas diferentes e que deve ser exposto ou extinto pela sua raiz (no caso da hidra, derrotada pelo seu corpo). O que Sócrates muitas vezes fazia em seus diálogos era expor as mentiras de cidadãos das altas classes sociais gregas que buscavam tirar proveito dos mais pobres, dos menos instruídos etc.

 

Leitura ecumênica de "as boas obras", "a oração" e "o amigo insistente"

Aqui continuo com os ensinamentos de Jesus, conforme os textos atribuídos a Mateus e a Lucas:  Fazer as boas obras discretamente (Mateus, Lu...