segunda-feira, 24 de junho de 2024

Leitura ecumênica de "as boas obras", "a oração" e "o amigo insistente"

Aqui continuo com os ensinamentos de Jesus, conforme os textos atribuídos a Mateus e a Lucas: 

Fazer as boas obras discretamente (Mateus, Lucas) 

"Guardai-vos de fazer a vossa esmola diante dos homens, para serdes vistos por eles; aliás, não tereis recompensa junto de vosso Pai, que está nos céus. 

Quando, pois, deres esmola, não faças tocar trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem glorificados pelos homens. Em verdade vos digo que já receberam a sua recompensa. 

Mas, quando tu deres esmola, não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita; Para que a tua esmola seja dada em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, ele mesmo te recompensará publicamente."

Jesus não só ensina que doar esperando recompensa é mera troca instantânea: Quando ele diz que os hipócritas já receberam sua recompensa, é que eles não vão obter recompensa no além, no reino dos céus, na vida espiritual. Pois quiseram chamar atenção para se fingir de caridosos diante os homens na Terra, e conseguiram apenas isto. 

Ser solidário de maneira discreta também permite a pessoa que recebe ajuda a manter a dignidade sem divulgar sua vulnerabilidade. 

Além disto o termo “não deixar a mão esquerda ver o que a direita está fazendo (doação)” tem um significado alegórico: A mão direita é o símbolo da piedade e da solidariedade - é a mão que doa. A esquerda, por sua vez, é a que julga, é a mão que aplica a lei, e esta lei é que condena os pecadores ao seu devido destino. Então deve-se ajudar o próximo sem julgar, pois nem Deus realmente julga e Jesus ensina isto de diferentes maneiras: Quando diz a Nicodemos que é o pecador que não vai a luz na hora da condenação e quando diz para não apontarem "o cisco no olho de outrem", mas antes "tirarem a trave (ramo, graveto) do próprio olho". Isto é ser manso de coração: um pré-requisito para se propagar o bem. 

A Oração (Mateus, Lucas) 

"E, quando orares, não sejas como os hipócritas; pois se comprazem em orar em pé nas sinagogas, e às esquinas das ruas, para serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo que já receberam o seu galardão. 

Mas tu, quando orares, entra no teu aposento e, fechando a tua porta, ora a teu Pai que está em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará publicamente. E, orando, não useis de vãs repetições, como os gentios, que pensam que por muito falarem serão ouvidos. 

Não vos assemelheis, pois, a eles; porque vosso Pai sabe o que vos é necessário, antes de vós lho pedirdes. 

Portanto, vós orareis assim: Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja o teu nome; Venha o teu reino, seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu; O pão nosso de cada dia nos dá hoje; E perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores; E não nos conduzas à tentação; mas livra-nos do mal; porque teu é o reino, e o poder, e a glória, para sempre. Amém. 

Porque, se perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai celestial vos perdoará a vós; Se, porém, não perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai vos não perdoará as vossas ofensas. 

E, quando jejuardes, não vos mostreis contristados como os hipócritas; porque desfiguram os seus rostos, para que aos homens pareça que jejuam. Em verdade vos digo que já receberam o seu galardão. 

Tu, porém, quando jejuares, unge a tua cabeça, e lava o teu rosto, Para não pareceres aos homens que jejuas, mas a teu Pai, que está em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará publicamente."

Além de indicar a irrelevância de se repetir as orações de maneira vã ou fútil, Jesus propõe uma revolução na oração: Ao invés de se referir a Deus como Senhor, ou “ó Senhor”, como faziam os judeus há séculos, ele mostra a possibilidade da pessoa rezar individualmente chamando Deus de Pai. Isto mostra uma relação de intimidade do orador com Deus, e também um respeito e uma esperança de receptividade. Pai aqui não significa masculinidade alguma: é proximidade, e poderia ser substituído pela palavra Mãe, pois Deus é supremo, e de certo modo, é espírito como diz João, o evangelista. 

“Estás nos céus” poderia se referir a um mundo superior, como o paraíso etc, mas certamente se refere a onipresença de Deus: Em concórdia com isto, a Kriya Yoga diz que Ele está em todo espaço, portanto, está em tudo que se percebe e o que não se percebe. 

Santificar seu nome, possivelmente é pedir para que Deus sempre seja lembrado - toda vez em que se falar qualquer um dos nomes de Deus, que seja falado de coração, buscando uma aproximação com O Todo piedoso. 

Pedir para que Deus venha ao vosso reino pode ser pedir para que ele venha para todos na Terra, mas isto já faz parte da onipresença Dele. Então, outra possibilidade, é a do orador estar pedindo para se conectar com o Criador: oferecendo-se como parte do reino de Deus. É trazer o reino de Deus, e a sua lei de amor ensinada por Cristo, para Terra. 

Além disto, na oração “Pai nosso” ensinada por Jesus, pede-se que seja feita a vontade de Deus - o que indica um ato de confiança no Criador de tudo, afinal ele criou tudo por amor e ama a todos. Sua lei é de amor ao próximo, e para amar, é preciso perdoar. Assim não devemos esperar somente que outros nos perdoem, mas também devemos perdoar os outros. 

Pedir o pão não é só pedir alimento, é pedir o ensinamento de Cristo e seu amor. O alimento espiritual é para nossa alma: disciplina para conectar-se com Deus, para ter autocontrole, piedade e paciência. Por fim, na oração pede-se à Deus, forças para resistir as provocações e para que fiquemos livres do mal, que é tudo o que se opõe a lei divina de amor. 

Sobre o jejum, é possível que este sirva como esforço para resistir a tentação dos excessos, ou seja, dos pecados. Com o jejum mostramos que não damos tanto valor aos alimentos, nem na questão de estocá-los aos montes, nem no que se diz respeito a se entregar à fartura exagerada ou aos prazeres do sabor. Isto é evitar o vício em prazeres sensoriais (especificamente do paladar), mas também pode ser uma forma de mostrar a confiança em Deus e de poupar a vida animal ao evitar comer carne. Ao escolher realizar o jejum, jamais deve-se mostrar sofrimento, afinal trata-se de uma escolha de se fazer o bem. Se fazer de vítima em tal situação é uma contradição e um desprezo por Deus. 

Parábola do "Amigo Insistente" (Lucas)

"Jesus disse-lhes também: Qual de vós terá um amigo, e, se for procurá-lo à meia-noite, e lhe disser: Amigo, empresta-me três pães, Pois que um amigo meu chegou a minha casa, vindo de caminho, e não tenho que apresentar-lhe; Se ele, respondendo de dentro, disser: Não me importunes; já está a porta fechada, e os meus filhos estão comigo na cama; não posso levantar-me para tos dar; Digo-vos que, ainda que não se levante a dar-lhos, por ser seu amigo, levantar-se-á, todavia, por causa da sua importunação, e lhe dará tudo o que houver mister. 

E eu vos digo a vós: Pedi, e dar-se-vos-á; buscai, e achareis; batei, e abrir-se-vos-á; Porque qualquer que pede recebe; e quem busca acha; e a quem bate abrir-se-lhe-á. 

E qual o pai de entre vós que, se o filho lhe pedir pão, lhe dará uma pedra? Ou, também, se lhe pedir peixe, lhe dará por peixe uma serpente? Ou, também, se lhe pedir um ovo, lhe dará um escorpião? Pois se vós, sendo maus, sabeis dar boas dádivas aos vossos filhos, quanto mais dará o Pai celestial o Espírito Santo àqueles que lho pedirem?"

Jesus ensina também o valor da persistência, pois o bem não pode ser propagado com desistências e vontade fraca. É preciso perseverança em um caminho regido por piedade e solidariedade. 

Esta persistência não difere da perseverança e é um dos requisitos para a meditação nas práticas do hinduísmo como a Kriya Yoga. Portanto bater na porta também significa não desistir de meditar, de aquietar a mente, eliminando desejos e preconceitos. A meditação sincera e humilde perante Deus é um caminho para o desenvolvimento da espiritualidade como explica o hinduísmo. Isto porque a meditação é um exercício para perceber os próprios pensamentos e sentimentos. A partir daí busca-se superar aqueles que contradizem os ensinamentos dos mestres enviados por Deus; além de, através do aquietamento da mente, se exercitar o auto controle e a perseverança que são diferentes da mera repressão de pensamentos e sentimentos. Por fim, a meditação também pode ser considerada a busca pela consciência de Deus e a prática de humildade e gratidão a Deus - o Criador, Mantenedor e Renovador.

 

segunda-feira, 17 de junho de 2024

Continuação de "A Nova Lei comparada à Antiga/ Sermão de Jesus"

Segue a continuação dos textos de Mateus e de Lucas, sobre os ensinamentos de Jesus:

"Ouvistes que foi dito aos antigos: Não cometerás adultério. 

Eu, porém, vos digo, que qualquer que atentar numa mulher para a cobiçar, já em seu coração cometeu adultério com ela. Portanto, se o teu olho direito te escandalizar, arranca-o e atira-o para longe de ti; pois te é melhor que se perca um dos teus membros do que seja todo o teu corpo lançado no inferno. E, se a tua mão direita te escandalizar, corta-a e atira-a para longe de ti, porque te é melhor que um dos teus membros se perca do que seja todo o teu corpo lançado no inferno. 

Também foi dito: Qualquer que deixar sua mulher, dê-lhe carta de divórcio. 

Eu, porém, vos digo que qualquer que repudiar sua mulher, a não ser por causa de fornicação, faz que ela cometa adultério, e qualquer que casar com a repudiada comete adultério."

A lei de evitar o adultério é aperfeiçoada da seguinte maneira: Não olhar desejando a mulher / o homem, pois isto é objetificar o ser humano e também é um tipo de cobiça. Objetificar é não respeitar o próximo e torná-lo possível alvo de violência. Além disto, todo crime e toda desigualdade começa da cobiça de algo, basta vermos o exemplo do dinheiro: Ao longo da história, a tecnologia e a capacidade de produção evoluiu muito, mas a iniquidade também aumentou: temos um número enorme de pessoas pobres, sem renda e sem moradia, enquanto alguns pouquíssimos têm fortunas gigantescas. Esta desigualdade é fruto de uma ganância insaciável dos indivíduos mais ricos e propaga miséria por toda civilização humana. Estas coisas acontecem porque a cobiça é um vício: Esta cobiça não é desejar algo que nós precisamos, é o desejar sempre mais. A pessoa que cobiça um homem ou uma mulher trata este(a) como objeto sexual e certamente irá querer mais e mais sexo. Bem como o ganancioso que enriquece e quer mais e mais dinheiro. O vício entorpece e limita a mente, além de causar mal às outras pessoas que dependem da pessoa “viciada” de maneira direta ou indireta. A seguir, Jesus fala sobre os juramentos e depois sobre como a vingança e a ira devem ser superadas:

"Outrossim, ouvistes que foi dito aos antigos: Não perjurarás, mas cumprirás os teus juramentos ao Senhor. 

Eu, porém, vos digo que de maneira nenhuma jureis; nem pelo céu, porque é o trono de Deus; Nem pela terra, porque é o escabelo de seus pés; nem por Jerusalém, porque é a cidade do grande Rei; Nem jurarás pela tua cabeça, porque não podes tornar um cabelo branco ou preto. Seja, porém, o vosso falar: Sim, sim; Não, não; porque o que passa disto é de procedência maligna."

Evitar juramentos é evitar a priorização de questões mundanas - é evitar priorizar os interesses terrenos. Embora alguns juramentos possam parecer belos, eles são em geral, exageros, excessos ou promessas desnecessárias sobre coisas que estão além do nosso controle. Como confiar em Deus e jurar algo para outro ser humano? Isto é contraditório por si só. Jesus pede simplesmente sinceridade e coerência: responder "sim ou não" sem querer dizer outra coisa, sem dissimulações ou mentiras.

"Ouvistes que foi dito: Olho por olho, e dente por dente. 

Eu, porém, vos digo que não resistais ao mau; mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra; E, ao que demandar em juízo contigo, e tirar-te a túnica, larga-lhe também a capa; E, se qualquer te obrigar a caminhar uma milha, vai com ele duas. Dá a quem te pedir, e não te desvies daquele que quiser que lhe emprestes; empreste sem esperar coisa alguma. 

Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo, e odiarás o teu inimigo. 

Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem; para que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus; Porque faz que o seu sol se levante sobre maus e bons, e a chuva desça sobre justos e injustos. Pois, se amardes os que vos amam, que galardão tereis? Não fazem os publicanos (pecadores) também o mesmo? E, se saudardes unicamente os vossos irmãos, que fazeis de mais? Não fazem os publicanos também assim? 

Sede vós pois perfeitos, como é perfeito o vosso Pai que está nos céus."

A psiquê humana (seja alma ou mente) é capaz de evoluir racionalmente e de adquirir conhecimento. E também pode desenvolver sua sensibilidade/ empatia e força de vontade até, por fim, evoluir seu caráter moralmente e eticamente. 

Na história dos povos hebraicos/ judaicos pode se notar esta evolução com a superação do conceito de “ponto de honra”. A crença preconceituosa baseada na exaltação da personalidade e no orgulho, que gerou a frase “olho por olho, dente por dente”. Este pensamento simplista propagava a vingança, com a idéia rudimentar de retribuir uma ofensa ou injúria com outra ofensa / injúria. Até que então, Jesus vem e diz “se alguém vos bater na face direita, apresentai também a outra”. A pessoa orgulhosa rapidamente considera isto uma covardia ou uma tolice, já que ele não é capaz de imaginar nem sentir o futuro, portanto não entende que há mais coragem em suportar a ofensa / insulto, do que em revidá-la. 

É provável que mesmo no judaísmo místico que existiu na época do hermetismo, ou seja, pelo menos desde 300 antes de Cristo (tradicionalmente alega-se que existiu ao menos desde 2600 a.C.), o conceito de “olho por olho” (a vingança) já estivesse expresso como uma atitude errada. Esta confusão se dá em relação à Geburah, a zéfira (conceito) da força, do julgamento. Força aqui não é o aspecto físico, nem o ato de “julgar”. Refere-se sim à força de vontade para suportar uma ofensa. Refere-se ao julgamento de perceber os próprios deslizes e fraquezas mentais, corrigi-los e seguir firme no caminho do bem. No judaísmo místico, esta relação entre Geburah (a força, julgamento) e Chesed (a piedade, o amor) pode parecer difícil, mas é o que leva a uma evolução sentimental/ espiritual. Portanto Jesus veio corrigir não só os judeus na província romana da Judéia, como todos aqueles que viviam em orgulho nas seitas e religiões sincréticas pelo mundo todo. 

Dar a outra face ainda traz o significado de “mostrar o outro lado”, ou seja, ensinar que a violência do ser humano é um comportamento pior que animalesco/ selvagem, pois é movido por ódio ou rancor e pode gerar um ciclo vicioso de agressões e/ ou de conflitos. De fato, este pode ser um ensinamento difícil, uma vez que requer que a pessoa “pense adiante”, porém mesmo na natureza não há vida que destrua uma outra vida se não for por uma causa urgente, como por exemplo, sua sobrevivência. O espiritismo, bem como o platonismo, afirma que as psiquês desencarnadas (espíritos) retém seus sentimentos e caráter de quando eram “Vivos”/ encarnados. Por isso, Platão mostra que Sócrates em diálogo com os sofistas Górgias, Pólux e Cálicles, explicava que é melhor sofrer injustiça do que cometer injustiça. 

Ainda explicando sobre a importância de não irar-se, espiritualistas que "desenvolveram" ou receberam o dom da mediunidade, sabem ou deveriam saber que não se afasta um espírito cheio de ódio, demonstrando ódio. A pessoa obsidiada, por exemplo, deve fazer uma prece demonstrando humildade, paciência e firmeza. 

Leituras da Sanātana Dharma (hinduísmo), como a Kriya Yoga, explicam que evoluir espiritualmente não se trata de segurar a raiva ou reprimir o desejo: é eliminar a raiva, o desejo e o medo da própria mente. Embora possivelmente a maioria das pessoas considere tal feito muito difícil ou impossível, a verdade é que isso é praticável através da atenção em si mesmo, em seus próprios sentimentos e pensamentos. É claro que além da atenção é preciso esforço, devoção, determinação, piedade, paciência etc...

Por fim, deve-se sempre perdoar os oponentes e inimigos, sejam eles indivíduos ou grupos, próximos ou distantes. Não se trata de autodestruir-se e sim, de tentar ensinar o agressor a ser mais piedoso, ou simplesmente evitá-lo, jamais imitando as ofensas ou as violências deles. Isto não é utópico nem somente espiritual, é, antes de tudo, humanizador, pois colabora com uma convivência pacífica entre os seres humanos.

 

segunda-feira, 10 de junho de 2024

Leitura Interreligiosa: Renovação da Lei por Jesus e a Reconciliação

Nesta postagem trago as falas de Jesus de acordo com "textos de Mateus e de Lucas", dividido em duas partes: 

A Nova Lei comparada à Antiga (Mateus) 

"Não cuideis que vim destruir a lei ou os profetas: não vim abrogar (abolir), mas cumprir (levá-los à perfeição). 

Porque em verdade vos digo que, até que o céu e a terra passem, nem um jota ou um til jamais passará da lei, sem que tudo seja cumprido. 

Qualquer, pois, que violar um destes mandamentos, por menor que seja, e assim ensinar aos homens, será chamado o menor no reino dos céus; aquele, porém, que os cumprir e ensinar será chamado grande no reino dos céus. 

Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus. 

Ouvistes que foi dito aos antigos: Não matarás; mas qualquer que matar será réu de juízo. 

Eu, porém, vos digo que qualquer que, sem motivo, se encolerizar contra seu irmão, será réu de juízo; e qualquer que disser a seu irmão: Raca (idiota ou insignificante), será réu do sinédrio; e qualquer que lhe disser: Louco, será réu do fogo do inferno."

Pode parecer estranho Jesus dizer que não veio abolir as leis do judaísmo, sendo que ele criticou várias seitas (fariseus, escribas, saduceus) desta religião em seu tempo. Mas na verdade, Jesus fala em levar à perfeição, daí entende-se que os ensinamentos de Cristo são um desenvolvimento do monoteísmo típico do judaísmo e não um mero complemento nem algo que simplesmente se mistura com as leis anteriores. Sem Jesus, a religião cairia no clubismo, na rivalidade, no discurso de “nós e eles”. A grosso modo, o que acontecia com as religiões era o seguinte: Quanto mais antigos os profetas, mais adaptados a uma humanidade bruta e ignorante, eram seus ensinamentos. 

Ainda que a religião cristã tenha se dividido gradualmente em várias igrejas e diversos cultos após a morte de Jesus, é simples entender que tal separatividade religiosa seria ainda maior sem seus ensinamentos. Pois antes de suas pregações, além de existirem diferentes “mitologias” com variados cultos dedicados a “deuses” bem diversos entre si, a religião monoteísta abraâmica (o judaísmo) já estava dividida em diferentes seitas (fariseus, escribas, essênios etc). 

Jesus aperfeiçoa a lei de não matar, dizendo para não se deixarem cair na cólera nem ofenderem o próximo. Afinal as agressões se iniciam no desejo das pessoas e podem ser planejadas antes de serem realizadas. Cortar o mal da violência pela raiz, é esforçar-se para ignorar ofensas e não julgar o outro nem em pensamento, pois é daí que surge o preconceito. Não se trata de reprimir pensamentos ou sentimentos e sim de prestar atenção nas próprias intenções e ideias, para depois avaliar a si mesmo e transformar-se, pois progresso não ocorre apenas pelo nosso aspecto racional: também acontece pelo sentimental/ empático. 

Outro ponto que poderia causar polêmica é o fato de Jesus dizendo que alguém será réu no fogo do inferno. Isto parece em contradição com que Jesus diz à Nicodemos que Deus não julga: é o pecador que não vai à luz devido à vergonha pelas obras más que fez. 

Porém, lembrando que o tema central do ensinamento de Jesus é o amor piedoso, é possível interpretar a passagem corretamente sem que esta contradiga outras: "Fogo do inferno" então é, na melhor das hipóteses, um sofrimento intenso pós vida terrestre/ após a alma deixar o corpo. A alma pecadora não suporta a pureza e bondade da luz de Jesus ou de Deus, e "foge para as trevas". Afastada de Deus e da fulgurante luz da justiça, da temperança, do amor, enfim do bem, a alma tomada por sentimentos negativos após ver a verdade e não conseguir mais esconder seus feitos e pensamentos de si mesma, "queima no fogo do inferno" - É julgada por si mesma devido às obras egoístas que fez durante sua vida na Terra/ sua encarnação anterior. Os sentimentos negativos que "queimam" a alma podem ser os mais diversos: pode ser inveja ao ver alguém que ela odeia "na luz" de Deus, de Jesus ou dos "anjos", pode ser um orgulho persistente que a isola no pós vida, pode ser rancor, vergonha etc. Isto está em acordo com o espiritismo, o platonismo e o hinduísmo (e certamente com outras religiões e espiritualidades como o druidismo celta, religiões relacionadas à cultura yorubá etc).

Reconciliação (Mateus, Lucas) 

"Dizia ele à multidão: "Quando vocês veem uma nuvem se levantando no ocidente, logo dizem: 'Vai chover', e assim acontece. 

E quando sopra o vento sul, vocês dizem: 'Vai fazer calor', e assim ocorre. 

Hipócritas! Vocês sabem interpretar o aspecto da terra e do céu. Como não sabem interpretar o tempo presente? 

Por que vocês não julgam por si mesmos o que é justo? 

Portanto, se trouxeres a tua oferta ao altar, e aí te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, Deixa ali diante do altar a tua oferta, e vai reconciliar-te primeiro com teu irmão e, depois, vem e apresenta a tua oferta. 

Concilia-te depressa com o teu adversário, enquanto estás no caminho com ele (rumo ao magistrado), para que não aconteça que o adversário te entregue ao juiz, e o juiz te entregue ao oficial, e te encerrem na prisão. 

Em verdade te digo que de maneira nenhuma sairás dali enquanto não pagares o último ceitil (centavo)."

Não basta ter conhecimento objetivo/ material, como por exemplo entender os fenômenos climáticos: é preciso entender as necessidades humanas como a receptividade e a equidade para possibilitar o convívio pacífico e justo. Este progresso no convívio entre os seres humanos é social e também auxilia o progresso espiritual. Assim, é necessário que as pessoas se conciliem (fiquem em paz) entre si antes de realizarem práticas religiosas (culto, orações etc). Jesus mostra a importância de se respeitar o próximo, a vida e o todo, pois ensina que o bem se manifesta com devoção e amizade. Não basta buscar justiça ou retidão: as pessoas precisam ser piedosas e solidárias. Quem verdadeiramente crê em Deus e/ou na divina lei de amor, não guarda mágoas, não busca condenar o próximo e nem cria rixas. Deixar as inimizades e/ou as disputas persistirem pela vida é algo que custa até mesmo após a vida na Terra. 

A filosofia ocidental, fundada por Platão, aberta à dimensão espiritual, também indica a importância superior da justiça e do bem: Quando questionado se não tinha medo de morrer, Sócrates disse que estava em paz consigo mesmo e com as leis de Atenas, a sua cidade. Sócrates não tentou se vingar de seus acusadores interesseiros e ardilosos nem tentou fugir de seu julgamento; ele nunca desrespeitou as leis por entender que elas eram suficientemente boas para si e para seus compatriotas e sempre buscou a sabedoria, a verdade e o bem. Não se trata de uma questão de mera obediência às leis e sim da prática e busca da virtude/ da ideia do bem. Isso tranquilizava Sócrates, pois ele sabia que havendo algo após a morte, o novo estado de existência estaria de acordo com que ele pensava, sentia e praticava. 

 

 

segunda-feira, 3 de junho de 2024

Leitura intereligiosa de "Escolha dos Apóstolos"

A seguir está o breve texto onde Mateus, Marcos e Lucas indicam Jesus escolhendo seus apóstolos (certamente entre um número maior deles). Há algumas pequenas diferenças entre os textos e conteúdos dos autores...

"Jesus subiu ao monte, passou a noite inteira orando a Deus e, ao amanhecer, chamou os que ele quis. E, chamando (designando) os seus doze discípulos, deu-lhes poder sobre os espíritos imundos, para os expulsarem, e para curarem toda a enfermidade e todo o mal. 

Ora, os nomes dos doze apóstolos são estes: O primeiro, Shim'on (Simão), chamado Kefas (Pedro), e Andreas (André), seu irmão; os irmãos Ya’akov (Tiago),e Yohannan (João), filhos de Zabdi (Zebedeu), aos quais pôs o nome de Boanerges (filhos do trovão); Philippos (Filipe) e Bar Talmay (Natanael Bartolomeu); Ta’oma (Tomé) e Matityahu (Mateus), o publicano; Ya’akov (Tiago), filho de Alfeu, e Yehudah (Judas) Lebeu, apelidado Tadeu; Shim'on (Simão), o Zelote (o Cananita), e Yehudah (Judas) Iscariotes, aquele que o traiu."

O número de apóstolos escolhidos por Jesus é 12, o mesmo número das tribos de Judá. Independentemente de possíveis discussões acerca deste número, as 12 tribos citadas no velho testamento eram o início de uma nova (ou renovada) civilização judaica-israelita oriunda das antigas tribos hebraicas monoteístas. Moisés trouxera os 10 mandamentos de Deus e Josué liderou seu povo em um período entre os anos de 1512 a.C. e 1391 a.C. ou entre 1311 a.C e 1191 a.C. Nestas épocas certamente todos os povos e civilizações haviam feito pouco progresso intelectual e empático, as guerras eram muito comuns e Josué deu ênfase à coragem e à firmeza na fé e no seguimento dos ensinamentos judaicos daquele período antigo. 

Os 12 apóstolos de Jesus, por sua vez, teriam a função não só de difundir o cristianismo, como de formar uma comunidade nova (alternativa de certo modo) também monoteísta, como mostrada nos Atos dos Apóstolos. A renovação trazida por Jesus durante o século 1 é a ênfase na piedade/ no amor a todos seres humanos e a Deus, sem se apegar às coisas do mundo. 

Jesus não é autoritário, mas foi o mestre dos apóstolos no sentido de ensiná-los sobre a lei divina de amor. Os apóstolos passaram a buscar viver como Jesus os ensinara: uma vida ativa de humildade, auto percepção, paciência, devoção ao bem, força de vontade, piedade e amor responsável, revolucionário e esperançoso. Este estilo de vida devocional é um sentido de vida alicerçado em valores universais: Valores internos da pessoa e também externos, por serem úteis à humanidade, precisando serem aplicados coletivamente para difundir ética, equidade e esperança. 

 Os “poderes concedidos” por Cristo aos apóstolos, através de sua presença e ensinamentos, certamente são o que o espiritismo classifica como capacidades mediúnicas, ou simplesmente, mediunidade. Elas são mencionadas nos Atos dos Apóstolos, como graças recebidas, o que possivelmente originou o termo “agraciado por Deus” ou “agraciado pelo Espírito Santo”. Um médium, é um intermediário entre a Terra (o mundo material, ou o universo tridimensional) e o “além”, seja chamado de reino dos céus, mundo espiritual ou plano astral. A mediunidade é aceita entre diferentes grupos de pessoas, mas com algumas diferenças de interpretações entre si. Alguns destes grupos são: espíritas, teósofos, umbandistas, candomblecistas, algumas ordens místicas e espiritualistas generalistas. 

Também é possível que estes poderes chamados de graças nas igrejas cristãs, de mediunidade no espiritismo e na umbanda e de kripa no hinduísmo (kri = fazer; pa = receber) tenham sido desenvolvidos pelos apóstolos de modo similar ao que a Kriya Yoga explica através de Yogananda, em sua obra "Autobiografia de um Yogue": O maya, o mundo físico, ou o véu dualístico governado pela relatividade, é o que Deus, a Única Vida e Unidade Absoluta, usa para aparecer como manifestações diversas. Transcender maya foi tarefa dada à raça humana pelos profetas milenares. Elevar-se acima da dualidade da criação e perceber a unidade do Criador é o objetivo supremo do ser humano. Os que se apegam à ilusão cósmica de maya se submetem à sua lei essencial de polaridade: fluxo e refluxo, ascensão e queda, prazer e dor. Este padrão cíclico assume uma monotonia angustiante depois que a alma humana passa por milhares de renascimentos, ela então, começa a lançar um olhar de esperança para além das compulsões de maya. 

A vida devocional, seja de um apóstolo, ou de um mestre yogi, então é harmonia entre o interior (purificação) e o exterior (ação). Não é meramente interior porque isso seria ignorar a criação de Deus e a necessidade da solidariedade, da piedade e da lealdade. Também não é só exterior porque isto seria se prender à realidade física/ sensorial: A ilusão/ maya, ignorando a autopercepção, a temperança e a força de vontade. A consciência deve se expandir rumo à onipresença - ser monoteísta é ir de encontro a Deus. Por isso existe o lema hindu “Eu sou Ele” que significa “estou junto a Deus”, ou de certo modo: "meu ego não importa - sirvo a Deus pois Ele nos ensina que sua lei é de amor". 

O ato de Jesus "dar aos apóstolos poder sobre os espíritos imundos", não indica apenas uma graça ou uma mediunidade a qual os discípulos só entrariam em contato com espíritos maus, isto seria contraditório. Se os discípulos/ apóstolos de Jesus, "tinham poder sobre espíritos imundos", certamente poderiam entrar em contato com "espíritos bons ou puros" (anjos etc). O fato é que Jesus foi ensinando seus discípulos e esperou que estes fizessem o bem: Confiou a eles que curassem os necessitados, que convertessem as pessoas que estivessem cometendo erros, mas que tivessem alguma abertura à escuta ou ao diálogo e também confiou que expulsassem eventuais "espíritos imundos". Os "espíritos imundos" agissem sobre os próprios discípulos ou sobre outras pessoas, deveriam ser vencidos. Fossem eles a causa de degradação moral, de adoecimento psíquico ou "perispiritual". Para realizar este último feito ("vencer tais espíritos") os discípulos tiveram liberdade e Judas Iscariotes deixou-se levar por desejos da vida material, como por exemplo o dinheiro, ao invés de viver os ensinamentos de Jesus. Judas Iscariotes é um exemplo daquele que desiste do bem e do amor para buscar interesses mesquinhos/ particulares. Esses poderes dados por Jesus aos apóstolos não são uma mera técnica: Os discípulos fiéis a Jesus conseguiam realizar alguns feitos ("milagres") similares ao de seu "mestre", porque priorizavam seus ensinamentos, se esforçando em viver o estilo de vida humilde, devocional e amoroso ensinado por Cristo para permanecerem unidos a Deus e seus anjos, como indica o texto atribuído a Filipe: 

Ele (Jesus) disse naquele dia na ação de graças: "Vocês que uniram a luz perfeita com o Espírito Santo, unam também os anjos conosco, como sendo as imagens". Não despreze o cordeiro, pois sem ele não é possível ver o rei. Ninguém poderá entrar no rei se ele estiver nu.

O termo "nu" aqui parece se referir àquele que abandonou o bem e o amor, tornando-se impuro/ imundo/ predominantemente mesquinho, como foi o caso de Judas Iscariotes. Seria uma nudez de intenções verdadeiramente boas e de benevolência, ou seja, uma ausência de bondade que impede a pessoa de encontrar a Deus, ocasionalmente chamado de rei, dependendo da época e do grupo cristão.

Talvez unir a luz com o Espírito Santo e com os anjos tenha relação com o que o espiritismo fundado por Allan Kardec chame de perispírito. Embora classificado como um "fluído" super sutil entre os espíritas da França do século 19, certamente este agente intermediário entre espírito e corpo estava relacionado ao que Franz Mesmer chamava de magnetismo animal. Nos estudos de Kardec é possível encontrar explicações fazendo relações de "poderes" como os citados nesta passagem, com a psiquê das pessoas (força de vontade, sentido de vida, intenção, estado moral etc), com a eletricidade e o magnetismo (ou seja, com o eletromagnetismo). No hinduísmo existem teorias sobre os chakras do ser humano que tocam a questão de "poderes" similares a desta passagem da bíblia. Este é um tema polêmico, onde ainda há pouquíssima concórdia entre espiritualistas, religiosos, filósofos e cientistas e entre teístas e ateístas...



Leitura ecumênica de "as boas obras", "a oração" e "o amigo insistente"

Aqui continuo com os ensinamentos de Jesus, conforme os textos atribuídos a Mateus e a Lucas:  Fazer as boas obras discretamente (Mateus, Lu...